Covid-19: desmancha-prazeres, até num buffet
Na minha mais recente estadia hoteleira, abordei o buffet de jantar. Foi aqui que percebi que chegámos ao fim de uma grandiosa era. Para mal da minha felicidade, mas para o bem do meu estômago, os buffets são servidos por empregados e já não são self-service.
A gastronomia portuguesa fascina-me tanto quanto os nossos costumes ou a quantidade de nomes e momentos que temos para designar o acto de comer. O apetite não tem horas, mas cada hora tem um nome diferente para quando se está a comer. Todas elas com regras, todas com os seus jeitos, menos quando nos aparece à frente um buffet. Ou bufé, ou bufete. Como queira porque, na hora de encher o prato, somos grandes selvagens.
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A gastronomia portuguesa fascina-me tanto quanto os nossos costumes ou a quantidade de nomes e momentos que temos para designar o acto de comer. O apetite não tem horas, mas cada hora tem um nome diferente para quando se está a comer. Todas elas com regras, todas com os seus jeitos, menos quando nos aparece à frente um buffet. Ou bufé, ou bufete. Como queira porque, na hora de encher o prato, somos grandes selvagens.
Ouvi dizer que era o fim dos pequenos-almoços de hotel, o fim dos grandes buffets, mas como bons portugueses que somos, desenrascar foi palavra de ordem e rapidamente se encontrou solução. Na minha mais recente estadia hoteleira, abordei o buffet de jantar. Foi aqui que percebi que chegámos ao fim de uma grandiosa era. Para mal da minha felicidade, mas para o bem do meu estômago, os buffets são servidos por empregados e já não são self-service. Tal como na peixaria, apontamos para o que queremos ver no prato.
Para mim, um míope sem fundo no estômago, este é um grande dilema emocional. Eu, que em condições normais, e apenas na primeira volta pelo buffet, chegaria à mesa na posse de pão, camarão, mousse de chocolate, lasanha vegetariana, feijão preto, batata frita, ovo cozido, melancia, fatias de pizza, um rissol e salada de polvo. Tudo bem acondicionado em dois pratos. E agora, o que seria de mim?
Parecendo que não, tenho vergonha das “alarvidades” que cometo em juntar estas comidas. “O que vai ser?”, pergunta a senhora que ansiosamente espera o meu pedido. “O que é aquilo?”, pergunto eu, sabendo que serei chato se repetir muitas vezes a mesma pergunta. A mudança é drástica. No fim da primeira volta, obedecendo a uma fila ordeira, o selvagem que há em mim é reprimido e traduz-se num prato simples: batata frita, feijão preto e camarão. Continua estranho, mas desta vez pareço apenas alguém sem rumo na vida. Até nas sobremesas. O que outrora era um prato cheio que gritava diabetes, hoje foram apenas duas fatias de meloa. Tenho mais vergonha do que vontade de comer.
Como se não bastasse, no final da refeição somos abraçados pelo nosso próprio hálito que nos relembra sobre as atrocidades cometidas poucos minutos antes. A máscara é muito mais do que um meio de protecção contra a propagação do vírus. É a máscara que nos consciencializa para o que acabámos de fazer. É ela que nos transmite a essência do bolo alimentar que estamos a criar. E a todos os que gostam de arrotar alto, plenos de satisfação pelo que comeram, depois de o fazerem com a máscara será o fim dessa mesma prática. O feitiço nunca se virou tão bem contra o feiticeiro.
A covid-19 trouxe demasiadas alterações ao que sempre demos por garantido. Quem diria que também era possível atacar a nossa inabalável capacidade para enfardar desordeiramente em hotéis, casamentos e baptizados? Fiquei abalado com o que tinha vivido e fui dormir. Acordei, ainda traumatizado, e sem capacidade emocional para descobrir o que teriam feito aos pequenos-almoços. Seria o fim dos meus ovos estrelados com molho de iogurte dentro de um croissant de chocolate? Talvez, mas, relendo a minha própria frase, até o meu corpo agradece.