Numa democracia nunca há fiscalização a mais
O país ganha por haver organizações profissionais, sociais ou outras interessadas em averiguar e fiscalizar o desempenho do Estado. Se há um problema grave em Portugal é a anomia da sociedade civil e das suas instâncias representativas.
As críticas do primeiro-ministro à Ordem dos Médicos na sequência do relatório devastador sobre o funcionamento do lar de Reguengos, onde morreram 18 pessoas, merecem reflexão. Para António Costa, as ordens profissionais “não existem para fiscalizar o Estado”, mas “para regular o exercício da actividade dos seus profissionais, ponto”, disse numa entrevista ao Expresso. Logo, o seu empenho em auditar o que aconteceu em Reguengos é um censurável abuso de poder. Até porque, de acordo com o primeiro-ministro, “é fácil ficar no nosso consultório e passar o dia a falar por videoconferência para as televisões”.
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As críticas do primeiro-ministro à Ordem dos Médicos na sequência do relatório devastador sobre o funcionamento do lar de Reguengos, onde morreram 18 pessoas, merecem reflexão. Para António Costa, as ordens profissionais “não existem para fiscalizar o Estado”, mas “para regular o exercício da actividade dos seus profissionais, ponto”, disse numa entrevista ao Expresso. Logo, o seu empenho em auditar o que aconteceu em Reguengos é um censurável abuso de poder. Até porque, de acordo com o primeiro-ministro, “é fácil ficar no nosso consultório e passar o dia a falar por videoconferência para as televisões”.
Esta visão restritiva da missão de uma ordem profissional suscita duas discussões. A primeira é saber se numa democracia existem limites legais ou outros que condicionem a fiscalização do Estado, do Governo ou do sector social. A segunda é questionar se uma ordem que representa os médicos tem competências para verificar se as boas práticas de saúde foram ou não aplicadas num lar. Quanto a esta questão, o que sabemos é que há algumas fragilidades no relatório divulgado – quando, por exemplo, se afirma que a autoridade de saúde pública não visitou o lar sem explicar que o delegado de saúde integra um grupo de risco relativo à covid-19. Quanto a poder fiscalizar um lar objecto de um natural alarme social, parece que o Artigo 3.º dos seus estatutos a obriga a essa missão, quando diz que a Ordem deve “contribuir para a defesa da saúde dos cidadãos e dos direitos dos doentes”.
O país ganha por haver organizações profissionais, sociais ou outras interessadas em averiguar e fiscalizar o desempenho do Estado. Se há um problema grave em Portugal é a anomia da sociedade civil e das suas instâncias representativas. Sempre que uma ordem ou uma associação se interessam em indagar sobre o que corre bem ou mal no país, todos ficamos a ganhar.
Se os resultados desse interesse são consistentes ou dão origem a conclusões erradas, enviesadas ou falaciosas, só a posteriori poderemos saber. O que não podemos nem devemos é tentar condicionar a participação de médicos, advogados ou empresários no esclarecimento das questões de interesse geral. Notar falhas e denunciar erros é a melhor forma de fazer com que os problemas se resolvam. Como, de resto, aconteceu neste caso, com o Governo a ter de fazer o balanço das medidas que aprovou para os lares e a anunciar o seu reforço. Estamos no tempo em que, como diz António Costa, devemos evitar “polémicas inúteis”. Discutir um relatório de médicos que traça um cenário preocupante num lar privado está longe de cair nessa categoria.