A reconfiguração dos partidos do centro e da direita
Ninguém ainda entendeu que quanto maior for o alarme e a demonização do populismo de direita mais ele crescerá e que a prova dos nove para o testar é confrontá-lo com o seu programa e, eleitoralmente, com a ulterior assunção de responsabilidades públicas.
Escrevemos em 7 janeiro de 2019, neste jornal, que o PSD e o CDS se arrastavam como sonâmbulos para uma derrota histórica, a qual ocorreu implacavelmente em outubro.
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Escrevemos em 7 janeiro de 2019, neste jornal, que o PSD e o CDS se arrastavam como sonâmbulos para uma derrota histórica, a qual ocorreu implacavelmente em outubro.
Diversas causas explicaram o desastre eleitoral, tais como o legado da inevitável austeridade de 2011/2015, o caráter anémico das suas lideranças, as divisões internas e a incapacidade de fazerem uma oposição visível, empolgante e consistente. Mas, a razão estrutural do esmaecimento dos setores social-democrata e democrata-cristão radica no facto de as preferências de uma parte do eleitorado da direita política não se encontrarem representadas nos programas e no discurso redondo desses dois partidos. Estes, até ao presente, não lograram estimular esse segmento desmoralizado da sociedade civil cansado do voto útil, que reclama uma alternativa de poder, um “salvador” real ou imaginário ou, apenas, um movimento de protesto que coincida com as suas aspirações e frustrações. Tendo o ato eleitoral de outubro somado mais 50% de abstenções, entende-se de que setor político adveio a maioria dos abstencionistas.
Movimentos tectónicos à Direita. Se por um lado a liderança do PSD, vencida a sua estridente oposição interna, reafirmou a representação do “centro político” e ensaiou uma espécie de oposição colaborante com o Governo, registou-se, por outro, um “volte face” nos partidos à sua direita.
O “Chega”, turbopropulsionado por uma política-espetáculo de “one man show”, assente no protagonismo parlamentar assertivo e no discurso afiado e politicamente incorreto do seu líder, passou de micropartido para o estatuto de candidato a representar o setor dominante do eleitorado à direita do PSD, obtendo na sondagem da Intercampus de 17 de agosto, o voto de quase 8% dos inquiridos. Já o CDS, muito amolgado nas urnas desde 2019, afunda-se, já que a viragem à direita do novo líder não galvaniza simpatizantes e militantes: poucos serão tentados a confiar os destinos do país a um dirigente que parece um quadro inseguro da juventude popular a debitar frases feitas, mirando com um olhar permanentemente estupefacto as luzes da ribalta.
O facto é que a agudização da crise económica e social no próximo semestre e a incerta recuperação abrem espaço para alguma margem de crescimento da oposição, a qual se afigura mais lenta no PSD e mais expressiva na direita populista, crítica do sistema. Desemprego, falências, redução do nível de vida, criminalidade, imigração desocupada e a clausura de toda a elite política são fermento de um discurso alternativo de direita radical que, sendo uma novidade em Portugal, consiste numa fórmula já batida noutros Estados europeus. No fundo, o populismo moderno integra o mesmo receituário: i) um líder carismático ou tribunício; ii) Um discurso político claro e assertivo que tematicamente corresponda aos desejos e temores de uma parte eleitorado; iii) A promessa de realização imediata do seu programa; iv) E uma dicotomia entre “nós” (o povo comum) e “eles” (a casta).
André Ventura, excessos à parte, foi hábil na mistura culinária destes condimentos e preparou cuidadosamente todas as suas intervenções, de modo a disparar rajadas de ideias fortes e condensadas sobre os seus adversários, ao ponto de alguns parlamentares de esquerda lastimarem o facto de, junto da opinião pública, a imagem da atividade na Assembleia se reduzir ao que disse ou não disse Ventura. Ressalvada a hipótese de um deslize fatal do líder (o estafado ataque aos ciganos, a repetição de manifestações “anti-racistas” e o risco de entrada de extremistas são uma permanente “Espada de Dâmocles”), regista-se que o “Chega”, goste-se ou não, tem margem para crescer no eleitorado conservador, abstencionista e, até, em franjas da esquerda, se explorar os novos temas da crise.
Travar o populismo? A estratégia eleitoral do “Chega” é clara: candidatar Ventura às presidenciais como contraponto a Marcelo, cujo consulado é qualificado a “mezza voce” pela oposição como ambíguo, tendo a sua unção como “candidato oficial do sistema” desagradado a um sector do eleitorado de direita cujo descontentamento será capitalizado pelo populismo. O objetivo consiste em obter uma votação de dois dígitos que permita exibir uma curva de crescimento exponencial, a partir dos 1,2% das últimas eleições, passível de catalisar uma dinâmica de progressão nas próximas legislativas. Embora as duas eleições não sejam comparáveis, o facto é que a “crónica da vitória anunciada” de Marcelo potenciará quer a abstenção ao centro quer votos de protesto. Apenas as autárquicas podem quebrar essa dinâmica (pois penalizam os pequenos partidos) entendendo alguns que a forma inteligente de contornar essa dificuldade seria o “Chega” concorrer apenas aos municípios e freguesias onde estima obter ganhos.
Um certo alarme da maioria da imprensa e de todo o arco partidário sobre a progressão populista gerou estratégias diversas de contenção do fenómeno. A extrema-esquerda, saudosa do PREC e da ilegalização dos adversários, liga o “Chega” ao “racismo” e ao regresso do “fascismo” e lançou uma petição apoiada por outros setores do sistema, defendendo a sua ilegalização. O PS, argutamente, tocou a reunir à esquerda para “travar a escalada”, procurando reforçar o apoio ao Governo dos seus antigos parceiros da “geringonça”. O PSD, ciente do esmaecimento do CDS e da impossibilidade de vencer o PS com maioria clara, abriu contrariado as portas a um entendimento pós-eleitoral com o “Chega” caso este se venha a “comportar bem”, sendo certo que a última coisa que a direita radical em ascensão deseja, a curto-medio prazo, é coligar-se seja com quem for. E o CDS, depois da saída de diversos militantes para os populistas jura que nunca se coligará com eles e retira do museu das figuras de cera a sua vocação democrata-cristã, a mesma do desastre de 2019.
Um outro setor inorgânico, que reúne cumplicidades nos media que vão do “bloco central” à extrema-esquerda bate na tecla da associação entre o suposto esquadrão da morte de ultradireita que ameaçou bloquistas e “antifas”, o perigo racista e o “Chega”, para amedrontar o PSD, impondo-lhe um cordão sanitário “ético”. O farisaísmo de um recente artigo de Santos Guerreiro é elucidativo dos rigores e temores dessa intelectualidade situacionista: alianças com a extrema-esquerda merecem absolvição mas coligações com a “direita radical” são malditas e pestíferas.
Ninguém ainda entendeu que quanto maior for o alarme e a demonização do populismo de direita mais ele crescerá e que a prova dos nove para o testar é confrontá-lo com o seu programa e, eleitoralmente, com a ulterior assunção de responsabilidades públicas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico