Crianças têm mais carga viral do que se pensava e podem contribuir para a propagação da covid-19, diz estudo

Estudo de investigadores do Hospital Pediátrico e do Hospital Geral de Massachusetts, nos EUA, é o mais abrangente já feito. Ao PÚBLICO, a autora Lael Yonker explica que, por terem um carga viral alta, as crianças podem contribuir para a propagação da doença, apesar de muitas serem assintomáticas.

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Teresa Pacheco Miranda

As crianças podem ter um papel mais importante na propagação comunitária da covid-19 do que se julgava. Os mais jovens podem ter cargas virais superiores às dos adultos doentes, mas permanecem assintomáticas ou têm manifestações muito leves da doença causada pelo SARS-CoV-2.

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As crianças podem ter um papel mais importante na propagação comunitária da covid-19 do que se julgava. Os mais jovens podem ter cargas virais superiores às dos adultos doentes, mas permanecem assintomáticas ou têm manifestações muito leves da doença causada pelo SARS-CoV-2.

As conclusões são de um estudo de investigadores do Hospital Pediátrico e do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, publicado esta quinta-feira. Esta é a investigação mais abrangente feita a crianças com covid-19, envolvendo 192 crianças e jovens dos zero aos 22 anos. Desse grupo, 49 — duas abaixo dos dois anos de idade, cinco entre um e os cinco anos, 11 entre cinco e dez anos, 16 entre 11 e 16 anos e 13 entre os 17 e 22 anos — estavam infectadas com a covid-19 e outras 18 tiveram uma doença relacionada com o novo coronavírus.

Mas o que significa, para um doente, a quantidade de carga viral que possui? Em resposta por escrito ao PÚBLICO, Lael Yonker, principal autora do estudo agora divulgado, explica que, com doenças disseminadas por secreções virais, “cargas virais mais altas sugerem um alto potencial de transmissão do vírus”. E quer isto dizer que as crianças transmitem mais a doença do que os adultos, sendo que têm cargas virais iguais ou superiores? “Não abordamos essa questão no nosso estudo. Em vez disso, provamos que as crianças têm, nos primeiros dois dias de infecção,​ níveis significativamente mais elevados de vírus do que os adultos hospitalizados depois de sete dias de sintomas”, explica a especialista do Hospital Geral de Massachusetts. 

Apesar de o estudo não ter analisado o quanto os mais jovens transmitem o vírus, a médica norte-americana afirma que a carga viral corresponde geralmente ao grau de infecção de uma pessoa.

“Fiquei surpreendida com os elevados níveis de vírus que encontrámos em crianças de todas as idades, especialmente nos dois primeiros dias de infecção”, disse a autora no comunicado de divulgação do estudo. “Não estava à espera de que a carga viral fosse tão elevada. Pensa-se num hospital e em todas as precauções tomadas para tratar adultos gravemente doentes, mas as cargas virais destes doentes hospitalizados são significativamente inferiores às de uma ‘criança saudável’ que anda por aí com uma elevada carga viral SARS-CoV-2”, acrescentou.

Ao PÚBLICO, Yonker diz que não podemos pensar nos mais jovens como sendo “livres da covid-19” já que estes podem desenvolver a doença. Ainda que muitos tenham sintomas leves, podem vir a desenvolver "doenças graves relacionadas com uma resposta inflamatória retardada”. “E as crianças podem contribuir para a propagação da pandemia”.

“Irrelevante” medir a febre?

Celso Cunha, virologista e professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT-NOVA) leu o estudo agora divulgado, e corrobora que quanto mais carga viral tivermos mais probabilidade temos de expelir para o exterior maiores quantidades de vírus. “E essas partículas, mantendo-se na atmosfera, vão ser inaladas por outra pessoa e essa pessoa poderá desenvolver sintomas. Em princípio, quanto mais exposição tiver essa pessoa, mais difícil será o organismo responder. E isto acontece com outras doenças, independentemente de serem respiratórias ou não”, referiu. E exemplifica: “Imagine que somos infectados com mil ou dez mil partículas virais e o nosso organismo responde bem. Se forem 10 milhões de partículas já será mais complicado”.

Os investigadores norte-americanos notam que, embora as crianças com covid-19 não sejam tão susceptíveis de ficar gravemente doentes como os adultos, como portadores assintomáticos, ou portadores com poucos sintomas, ao frequentarem a escola podem espalhar a infecção e levar o vírus para as suas casas. Uma realidade especialmente preocupante em famílias com idosos em casa.

Sobre esta questão, Celso Cunha diz que os investigadores concluíram que, no possível regresso às aulas nas próximas semanas, será “irrelevante” medir a febre às crianças precisamente por, independentemente de terem elevada carga viral, não terem sintomas. O estudo refere mesmo que quando as crianças apresentam sintomas típicos de covid-19, como febre, tosse ou corrimento nasal, nem sempre é fácil um diagnóstico preciso porque são sintomas comuns das doenças infantis. “E mesmo quando têm sintomas, são tão inespecíficos que para eles [investigadores] foi impossível dizer, só pelos sintomas, se é infecção por este vírus, outro vírus respiratório ou algum tipo de alergia. E estas crianças que não vão ter sintomas nenhuns, mas carregam o vírus são um potencial risco de transmissão para outras crianças e adultos, quer no contexto da escola quer no contexto doméstico”, conclui o professor.

Sobre a transmissão, sabe-se que o SARS-Cov-2 se liga a um receptor chamado “enzima conversora da angiotensina 2” (ACE2, na sigla em inglês), que é um receptor predominante no aparelho respiratório inferior e torna assim possível que o vírus chegue aos pulmões. Sobre esta questão, a investigadora escreve que a equipa descobriu que os mais jovens têm “uma menor expressão de ACE2”, o que pode ajudar a perceber o porquê de não serem tão afectados pela doença.