Minsk, Beirute. E Pemba? E Cabo Delgado? E Moçambique?
Os moçambicanos, já tão castigados pela miséria, pelas alterações climáticas, pela guerra, estão agora a ser esventrados pelo terrorismo. Não podemos mesmo fazer nada?
1. A agenda internacional está preenchida com a Bielorrússia, o Líbano, o conflito greco-turco e o acordo entre Israel e os Emirados. Um manto de esquecimento e alheamento cobre o drama moçambicano que assola Cabo Delgado. Nem por um segundo desvalorizo o que se passa em Minsk, Beirute ou na parte oriental do Mediterrâneo. Tirando o conflito israelo-árabe, nos últimos anos, tenho, aliás, acompanhado pessoal e presencialmente, a par e passo, os outros três focos de atenção internacional.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
1. A agenda internacional está preenchida com a Bielorrússia, o Líbano, o conflito greco-turco e o acordo entre Israel e os Emirados. Um manto de esquecimento e alheamento cobre o drama moçambicano que assola Cabo Delgado. Nem por um segundo desvalorizo o que se passa em Minsk, Beirute ou na parte oriental do Mediterrâneo. Tirando o conflito israelo-árabe, nos últimos anos, tenho, aliás, acompanhado pessoal e presencialmente, a par e passo, os outros três focos de atenção internacional.
2. Conheço razoavelmente bem a oposição bielorrussa, os seus protagonistas, o modo como têm lutado entre prisões, ameaças e retaliações. Sei bem o que é ir a Minsk para falar em seminários discretos de várias ONG e ser seguido, em todas as ocasiões, pelos mesmos dois agentes do KGB, que faziam questão de se fazer notar. Conheço os ardis de Lukaschenko, que chegam ao requinte de criar uma lei “anti-hooliganismo”, para poder deter temporariamente jornalistas e activistas – que, quais hooligans, ficam detidos enquanto decorrem as manifestações ou protestos. Uma nota que serve para ilustrar quão fundo me cala este movimento, que, de uma forma ou de outra, terá enormes consequências geopolíticas.
Também julgo conhecer o tabuleiro político libanês. Sei bem o que é ter de cruzar inúmeros pontos de controlo militar e de milícias para andar 40 ou 50 km e ser acompanhado sempre por dois seguranças, de metralhadora à banda, que nunca sabemos o que vão fazer. Ou de nos vendarem os olhos para poder chegar ao quartel-general de um qualquer líder partidário. E em cada reunião ver que aquela elite “político-militar-familiar-religiosa” é a mesma de sempre e vive congelada nos tempos da guerra civil. Na rua, com as pessoas comuns, como se de outro mundo se tratasse, ver que afinal não são nem maronitas, nem xiitas, nem drusos, nem sunitas, são pessoas. Pessoas que não vivem obcecadas com a religião ou a política; simplesmente querem paz e uma vida um pouco melhor; reféns que são de uma guerra que, sendo obrigatoriamente sua, não é “a sua”. E ainda os refugiados, que chegam quase a metade da população, vindos primeiro da Palestina e depois da Síria. Quase todos sunitas, a desequilibrarem as contas e a acantonarem ainda mais o Hezbollah, que é um “Estado dentro do não Estado”. Não há como não fazer da tragédia libanesa uma tragédia nossa.
3. Não se compreende, porém, que a justa atenção dada a estas situações, aí incluído o conflito greco-turco, deva pôr na sombra o drama que, neste exacto momento, se vive no Norte de Moçambique, em particular em Cabo Delgado.
Para lá de um número elevado mas indeterminado de mortos, a cifra de deslocados já ultrapassou o meio milhão de pessoas. Falamos de uma das regiões mais pobres do planeta, onde grassa a miséria. Os relatos de terror, por via do arrasamento de aldeias, são sistemáticos. A barbaridade e selvajaria dos ataques são assustadoras. Diante da ameaça tenebrosa, o número de gente que foge das povoações, deixando-as desertas e à mercê dos terroristas, não cessa de aumentar. Essas populações fogem para as cidades e, preferencialmente, para Pemba, onde todos os dias afluem dezenas, senão centenas, de pessoas. Os deslocados e as populações das cidades e vilas que os recebem vivem já em condições dramáticas, em alguns casos, no limiar da fome. As aldeias cristãs, as igrejas e missões são directamente visadas, mas há muitas comunidades muçulmanas que não escapam ao terror e ao pânico entretanto instalados. Seja entre cristãos, seja entre muçulmanos, os terroristas jihadistas escravizam as mulheres jovens e arregimentam, sob ameaça de morte, rapazes para as suas milícias. Do lado popular, são mobilizados adolescentes e jovens, a quem têm sido fornecidas armas para a defesa dos seus. O Exército moçambicano, que ontem parecia finalmente concentrar-se para responder à tomada jihadista do porto de Mocímboa da Praia, foi até agora incapaz de levar a sério esta ameaça.
Esta onda jihadista, já claramente ligada ao Estado islâmico e à sua expansão no leste africano, não pode ser ignorada pela comunidade internacional. Estamos a falar de uma região onde as comunidades cristãs e islâmicas, bem como animistas, conviviam pacificamente. A tradição islâmica é moderada, grande parte dos responsáveis islâmicos estão apavorados e consideram-se também vítimas da onda terrorista. O risco não é apenas interromper uma harmonia previamente existente, é verdadeiramente desencadear um espírito de “jihad” ou guerra santa. A única entidade que tem procurado dar visibilidade à situação é a Igreja Católica e, nomeadamente, o Bispo de Pemba. As autoridades moçambicanas estiveram, até há muito pouco tempo, “em negação” por causa de temerem os efeitos da instabilidade sobre os investidores internacionais na grande bacia de reserva de gás que ali existe. Uma pura estratégia de avestruz, como se vê pelo ataque da semana passada, pois a vaga terrorista já impôs a indesejada instabilidade. A deriva “jihadista”, aqui como no Médio Oriente, move-se também pela busca de riquezas que possam a prazo financiar a sua expansão.
4. Em Portugal, poucos parecem importar-se. A actuação do governo, em especial junto da União Europeia, é vergonhosamente tímida. E nem o Presidente da República, um consabido amigo e amante de Moçambique, se atreve a dizer nada. Na esfera europeia, o desinteresse e até o desconhecimento é doloroso. Borrel e o seu Serviço de Acção Externa ignoram com uma olímpica soberba burocrática o drama humanitário em curso. Um drama que teima em não entrar na agenda internacional. Será um inconsciente preconceito religioso (afinal as primeiras vítimas são cristãos) ou até, agora que tão apropriadamente nos focamos no racismo, rácico? Será o paternalismo sobre uma África dada como perdida? Os moçambicanos, já tão castigados pela miséria, pelas alterações climáticas, pela guerra, estão agora a ser esventrados pelo terrorismo. Não podemos mesmo fazer nada?
NÃO Ameaças racistas. Todo e qualquer fenómeno ou comportamento racista tem de ser denunciado e condenado. Nenhuma ameaça pode ser tolerada. Violência, ódio e radicalização devem ser travados.
NÃO Lares e ministra da Solidariedade. Reguengos é uma ferida humana e civilizacional. O descaso da ministra, filho da longa história desresponsabilização do “costismo”, não pode ficar sem consequências.