O museu (não) imaginado da pandemia
Que padrões poderão emergir da imensidão de representações, individuais e colectivas, da experiência de confinamento e de doença? Que atlas ou que museu será possível imaginar para a (hipotética) posteridade, tendo em conta a experiência patológica em que nos encontramos imersos, a nível global?
Em 1929, como consequência do seu súbito falecimento, Aby Warburg deixou-nos aquele que viria a ser um dos mais intrigantes projectos da História da Arte moderna: o Atlas Mnemosine, série de 63 painéis, com dimensões consideráveis (aproximadamente 150x200cm), forrados a tecido preto e compostos por cerca de mil desenhos, gravuras, recortes de jornais e reproduções fotográficas de pinturas, esculturas e objectos do quotidiano.
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Em 1929, como consequência do seu súbito falecimento, Aby Warburg deixou-nos aquele que viria a ser um dos mais intrigantes projectos da História da Arte moderna: o Atlas Mnemosine, série de 63 painéis, com dimensões consideráveis (aproximadamente 150x200cm), forrados a tecido preto e compostos por cerca de mil desenhos, gravuras, recortes de jornais e reproduções fotográficas de pinturas, esculturas e objectos do quotidiano.
Continuando a suscitar debate na actualidade, o projecto foi alvo de interesse por parte de diversos estudos, bem como de propostas de (re)organização, edição e apresentação. A título de exemplo, salienta-se a exposição comissariada, em 2011, por George Didi-Huberman, no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madrid. Ou, mais recentemente, a exposição, com data de estreia marcada para Novembro deste ano, na Heil Haus der Kulturen der Welt (HKW), produzida em parceria com The Warburg Institute e que foi precedida pelo lançamento de um catálogo e de um livro de ensaios reunindo reproduções dos painéis sobreviventes, assim como textos de vários artistas, teóricos e curadores, entre os quais Gerhard Richter, Giorgio Agamben, Ernst Gombrich e Hans Ulrich Obrist.
Apontado como trabalho pioneiro no recurso à iconografia numa abordagem, dir-se-ia, psicanalítica, da História da Arte, Warburg procurou estabelecer paralelismos formais e visuais, descobrindo padrões entre os registos de diferentes períodos históricos, com enfoque no Renascimento, sobre o que acreditava serem temas universalizantes da vivência e da expressão humanas; representações de pathos emocionais, transmissíveis e transmitidos, artisticamente, ao longo dos tempos. Para além de propor um entendimento diferenciado da tradição historicista nos estudos artísticos, Atlas Mnemosine coloca a criação artística em diálogo directo com os estudos sociais e com a psicologia. Por esse motivo, ainda que, talvez de forma um pouco desapercebida, Warburg revela-nos a importância do papel da curadoria na produção de sentido e no entendimento do objecto artístico.
Avançando até 1947, em O Museu Imaginário, e, curiosamente, recorrendo também à (re)montagem de reproduções fotográficas de obras e artefactos artísticos, André Malraux demonstra-nos, de forma decisiva, como os mecanismos de montagem e de significação do museu condicionaram o nosso entendimento sobre a Arte e a História da Arte, a partir do Renascimento e até à sua (aparente) moderna emancipação científica. No emblemático livro-ensaio, Malraux centra as suas atenções na museografia, entendendo-a como aparelho mediático, (re)produtor do conceito de obra de arte e do olhar, ocidental, sobre o objecto artístico.
Nesse sentido, um dos vários aspectos salientados por Malraux diz respeito à forma como o nosso imaginário sobre a estatuária da Antiguidade Clássica foi condicionado pela forma como estas subsistiram até à actualidade e, portanto, como têm vindo a ser expostas e apresentadas, necessariamente fora de contexto, nos museus. Como consequência, estamos, por exemplo, habituados a imaginar as estátuas de deuses gregos ou de imperadores romanos completamente desprovidas de cor, um condicionamento decorrente da degradação da camada pictórica que as cobria originalmente.
Coloquemo-nos no presente, d.C. (depois do coronavírus). Após a declaração do estado de pandemia, pela Organização Mundial de Saúde, em Março, assistimos a uma multiplicação de chamadas para trabalhos artísticos e de projectos expositivos online, com cariz mais ou menos espontâneo e efémero, como Covid Art Museum ou Art in Quarantine, este último promovido pelo colectivo português, wr3ad1ng d1g1t5.
Privilegiando o registo (áudio)visual e o formato de galeria, vários destes projectos trazem-nos à lembrança os painéis organizados por Aby Warburg. Ultrapassando-se o deslumbramento inicial da imago e com um olhar mais atento, consciente do aparato, e na senda da crítica de André Malraux, talvez possamos tentar simular o exercício de Atlas Mnemosine, partindo da análise das galerias online da pandemia. Dito de outro modo, que padrões poderão emergir da imensidão de representações, individuais e colectivas, da experiência de confinamento e de doença? Que atlas ou que museu será possível imaginar para a (hipotética) posteridade, tendo em conta a experiência patológica em que nos encontramos imersos, a nível global? Com que condicionamentos? E, neste caso, o que poderá, eventualmente, encontrar-se escondido debaixo da pintura?
Em Maio de 2020, num artigo intitulado Las imágenes de la cuarentena: ¿es correcto invisibilizar el drama?, Rebeca Pardo, investigadora e coordenadora do projecto Death and Illness Images Online, reflectia, a partir da realidade espanhola, sobre a forma como estava a ser conduzida a cobertura mediática da pandemia, questionando-se sobre quais as potenciais motivações e as implicações da escolha, ainda que devidamente fundamentada a nível ético, de nos coibirmos de representar os nossos mortos. Olhando para as galerias de projectos artísticos online, durante a pandemia, o que parece ficar de fora são, precisamente, as representações da doença per se; dos corpos doentes, em recuperação ou perecidos.
Contudo, para além do seu valor artístico e/ou estético, muitos dos projectos expositivos que surgiram durante este período assumiram-se, sobretudo, como plataforma para o registo e partilha da experiência de confinamento, apresentando-nos um retrato bastante completo das implicações da pandemia no quotidiano partilhado, praticamente, a nível mundial: os desafios nas idas às compras, no teletrabalho, na aquisição e utilização dos meios de protecção individual, a incerteza, as mensagens de esperança e desesperança, de revolta e resignação, as homenagens várias, personificações e abstracções do vírus e dos heróis que o combatem. Nesta viagem pelo atlas mnemónico da pandemia deparamo-nos, também, inevitavelmente, com o medo. Medo da morte, medo da fragilidade do corpo e medo da doença, tão invisível quanto votada à aparente invisibilidade.
A título de exemplo, Patient Zero (In Memory of Anyone Unknown to Me), integrada no âmbito da galeria online de Art in Quarantine, presta homenagem às vítimas mortais da doença, cujos nomes, idade e proveniência são directamente mencionados, numa espécie de memorial digital em rede. Esta obra de arte digital é também um manifesto da inquietação do autor, Pedro Alves da Veiga, em relação à crescente desumanização no acompanhamento dos infectados e dos mortos por infecção covid-19, privados da proximidade dos entes queridos e, por vezes até, de um funeral digno.
Este é o museu (não) imaginado da pandemia de covid-19. O valor documental e, porventura, histórico, de projectos como Art in Quarantine, revela-se além da sua qualidade pictórica, mais imediata. Como verdadeiros arquivos visuais, incorporam uma experiência de pandemia, mais ou menos universal e universalizante, em si mesma reveladora de padrões, de pathos psicoemocionais, que nos acompanham e nos definem, ao longo dos tempos.