Da futura rede de teatros e cineteatros portugueses: sete questões essenciais
A nova rede a implementar no terreno em 2021 deve projectar um paradigma que crie possibilidades sustentáveis de futuro para o sector artístico e cultural, alicerçado em princípios sólidos e realistas, e claramente comprometido com as pessoas e as instituições num diálogo partilhado e participado. Para que assim seja, há várias questões de base a considerar.
Até ao fim deste ano o Ministério da Cultura (MC) pretende definir e submeter à aprovação governamental a regulamentação da Lei n.º81/2019 que criou a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP), prevendo-se que em inícios de 2021 se inicie o seu processo de efectiva implementação com a abertura oficial de candidaturas.
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Até ao fim deste ano o Ministério da Cultura (MC) pretende definir e submeter à aprovação governamental a regulamentação da Lei n.º81/2019 que criou a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP), prevendo-se que em inícios de 2021 se inicie o seu processo de efectiva implementação com a abertura oficial de candidaturas.
A construção estruturada, consistente e produtiva de uma RTCP reveste-se de enorme relevância para o universo cultural e artístico desde logo por uma razão fundamental: demonstrar uma efectiva implicação e responsabilização (depois de vários adiamentos, retrocessos, “limbos”, ambiguidades, inoperâncias e lacunas) do Estado na definição, também por esta via, de uma estratégia global e com amplitude nacional para a Cultura. Esse desiderato, porém, não deve ser contaminado por uma habitual tentação centralista, de controlo e uniformização “cega” em modo top-down, nem por uma tradição dominantemente assistencialista apanágio de certo modus operandi político. Em paralelo, o processo de construção e implementação desta rede não pode reflectir uma visão simplista, formatada, desinformada e, assim, perigosamente redutora do diversificado, complexo e dinâmico ecossistema cultural preexistente. Só assim se dará um contributo realmente transformador, de modo gradual mas determinado e continuado, para as tão faladas metas de correcção das assimetrias regionais e incremento da coesão territorial, de democratização da fruição cultural, de crescente capacitação qualitativa dos equipamentos, equipas e programações, de apoio estabilizado à criação artística e de formação de públicos.
A RTCP deve projectar assim um paradigma que crie possibilidades sustentáveis de futuro para o sector, alicerçado em princípios sólidos e realistas, e claramente comprometido com as pessoas e as instituições num diálogo partilhado e participado. Ao mesmo tempo, não pode deixar de perseguir uma lógica integrada, em que o sector público coexista harmoniosamente com outras realidades distintas e plurais. Isto de modo a assegurar que as dinâmicas de criação, pensamento, programação, circulação e envolvimento dos territórios desenvolvidas por agentes e estruturas independentes de cariz profissional (organizados em associações, cooperativas, colectividades, fundações, etc.) – de dimensão e grau de estruturação menos musculados e, em geral, com recursos mais reduzidos – são igualmente incluídas, estimuladas e valorizadas neste novo arquétipo de rede cultural.
A concretização da RTCP terá ainda de estar alinhada e de concertar-se, numa visão transversal, com a esperada revisão do modelo de apoio às artes também anunciada pela tutela, a qual passa pela reformulação de vários pontos da legislação em vigor, designadamente do Decreto-Lei n.º103/2017 e da Portaria n.º71-B/2019.
Ainda a título prévio, saliente-se que o diploma publicado a 2 de Setembro de 2019 propõe duas operações distintas mas relacionadas: a credenciação dos espaços que se candidatam voluntariamente à inclusão na RTCP, a qual consiste na avaliação e no reconhecimento oficial da sua qualidade técnica; e a atribuição de verbas para apoio à programação artística desenvolvida pelas estruturas que concorrem. Daqui se infere, à partida, dois aspectos pertinentes: os equipamentos que usufruírem de apoio financeiro estatal terão de estar previamente credenciados; e o estatuto de “credenciado” não é, necessariamente, sinónimo de acesso directo a uma linha financeira de suporte complementar (e não devendo ser esta – enfatizo este tópico – a fonte principal de apoio) à sua programação.
Sublinho esta diferenciação sobretudo por considerar que ela pode funcionar precisamente como instrumento de discriminação positiva (no que toca ao apoio financeiro da tutela à proposta programática) sobretudo de regiões do território que não se inscrevem na faixa litorânea norte e centro – em que a macrocefalia é dominante e onde, em muitos casos, os municípios têm uma maior capacidade interna a nível de recursos humanos, logísticos e financeiros e, consequentemente, à partida, uma dinâmica cultural mais robusta e intensa – e, assim, de equipamentos que, em regra, não costumam usufruir de outras linhas de auxílio estatal.
Recorde-se ainda que a lei de 2019 explana três condições básicas para a credenciação dos espaços: o seu licenciamento junto da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, processo de tramitação geralmente demorada e rebuscada; a existência de um regulamento interno (muitos teatros continuam a não dispor deste instrumento); e a resposta aos requisitos a fixar em portaria própria – tópico a que aludirei de seguida, elencando, em síntese, sete questões relevantes quando se pensa na próxima etapa de formalização legislativa (regulamentação da rede), as quais, na minha óptica, consubstanciam inquietações recorrentes de muitos profissionais que trabalham no domínio cultural.
A primeira tem a ver com a diversidade e heterogeneidade das tipologias de equipamentos, dos modelos de organização e das práticas de gestão. Perante a pluralidade do panorama actual no que se reporta às artes performativas, a RTCP deve demonstrar algum grau de flexibilidade neste ponto-chave, não privilegiando ou impondo uma dada tipologia dominante de equipamento cultural, mas sim prevendo duas a três categorias/tipologias-base definidas em função da lotação (de público) da sala, da dimensão do seu palco/espaço cénico e capacidade técnica, e, eventualmente, do conceito-vocação e espectro da sua programação artística.
É sabido também, por outro lado, que, além dos espaços culturais de propriedade municipal que são geridos e dinamizados pelas próprias autarquias, há realidades heterodoxas em que existem protocolos de gestão ou de concessão de equipamentos públicos a entidades de cariz privado (quando sem fins lucrativos), as quais também perseguem legitimamente, numa escala local-regional, objectivos específicos em termos de intervenção cultural. Estes casos podem e devem integrar e beneficiar também do apoio da RTCP e ser alvo de uma análise igualmente criteriosa, sem preconceitos e equitativa em relação aos formatos de gestão pública.
Este último aspecto vai tocar, de alguma forma, numa matéria “sensível” e com posicionamentos antagónicos: a possibilidade de haver estruturas artísticas residentes nos teatros municipais, a qual, nos últimos tempos, tem sido aflorada publicamente por várias vozes ligadas ao milieu cultural. Aqui considero que, em última instância, caberá a cada entidade pública (autarquia ou outra), de forma autónoma, ponderada e – sublinho esta ideia – não pressionada/condicionada directa ou enviesadamente pelo poder central, decidir se, em função da sua visão cultural e do tipo de projecto artístico e respectivos conceito e estratégia programáticos que lhe são apresentados por uma dada entidade externa, deve ou não instalar um criador/artista, colectivo ou companhia profissionais num equipamento de que é proprietária. Sem aprofundar este tema, insisto na convicção de que a própria RTCP não deverá impor ou, de algum modo, favorecer (nem definir como um dos requisitos de admissão) determinado modelo ou orientação de gestão cultural dos equipamentos, seja ele qual for, visto que isso extravasa a missão central de uma rede de teatros: a sua matriz de serviço público, que visa assegurar um acesso generalizado do público às artes.
Direcção artística e programação: perfil e autonomia funcional. Mais um ponto “quente” deste processo. Por um lado, é pacífica a ideia de que a figura responsável pelo pensamento/visão e arquitectura da programação artística deve apresentar um perfil, uma formação, um percurso e um conjunto de aptidões que constituam uma clara mais-valia em termos de qualificação e experiência necessárias a um cargo de inegável centralidade numa estrutura cultural. Vocação multidisciplinar, domínio de práticas de transversalidade, conhecimento profundo e actualizado dos processos de produção e recepção culturais, ligação imersiva (em escuta activa) ao território, à comunidade e ao meio artístico – são traços incontornáveis que, obviamente, devem ser tidos em conta e valorados no processo de credenciação de dado equipamento a integrar a RTCP.
Noutra perspectiva, sabemos bem que a realidade portuguesa é desigual no que toca à natureza, diferenciação e motivação das programações culturais desenvolvidas ao nível local/regional. E aqui entra logo a indissociável questão da margem de manobra de um programador quando é simultaneamente funcionário de um município. E mais uma vez, neste particular como noutros domínios da vida colectiva, as generalizações podem ser perversas e redutoras. Se, de facto, há técnicos não habilitados para essa função ainda assim a desenvolvê-la, assim como há figuras políticas a definir agendas culturais, também existem, em contraponto, exemplos de programadores que, não obstante serem técnicos de autarquias, têm vindo a construir paulatinamente um percurso – que nunca ou dificilmente será consensual – reconhecido pelos pares, criadores e públicos, em que o profissionalismo, a competência e a autonomia (mesmo que continuamente “trabalhada/afinada” com o poder que a valida) são uma evidência quando se analisam as suas grelhas programáticas e, mais globalmente, a sua estratégia de mediação cultural e respectivo impacto.
Como é natural, existem também directores artísticos contratados (por convite ou concurso) por municípios ou em comissão de serviço que se têm destacado por um trabalho diferenciador, exigente e arrojado nos territórios em que operam, não obstante também poderem estar sujeitos, perante conjunturas e timings específicos, a situações em que possa haver tentativas de interferência política, subtil ou mais explícita, nas lógicas e escolhas subjacentes à programação apresentada.
Daí que o enfoque – defendido, legitimamente, por algumas vozes – na obrigatoriedade de o director artístico ou programador serem uma figura que não pertence ao quadro da administração pública, para assim assegurar a isenção e competência do seu papel, possa constituir, em parte, uma falsa questão, atendendo à diversidade de realidades que proliferam a nível nacional, além de fazer tábua-rasa do intenso e consistente labor já desenvolvido por vários programadores municipais, nalguns casos com um historial profissional de mais de uma década. Penso ser mais operativo, realista e justo, nos processos de credenciação e de atribuição de apoio financeiro à programação, colocar a tónica na imperatividade de a candidatura realmente contemplar a figura do director artístico/programador como requisito obrigatório (independentemente de ser interno ou externo, em termos de vínculo, à entidade em que trabalha) e de o mesmo apresentar um perfil adequado à função que desempenha – o qual, aliás, não deixará, de modo mais ou menos evidente, de estar espelhado na própria matriz e desenho programáticos que o mesmo submete para apreciação junto da rede.
A regulamentação das carreiras profissionais é outro tópico que não pode ser descurado nem por mais tempo adiado. Face ao vazio que existe nos quadros de pessoal da administração pública no que toca ao enquadramento legislativo das múltiplas profissões da Cultura (das mais antigas às emergentes), nomeadamente na área audiovisual, a RTCP deve ter aqui um papel altamente relevante de pressão e de criação de condições para que junto da tutela se possa desbloquear este processo de regulamentação, de modo a valorizar, dignificar e preservar os profissionais que operam neste universo, criando, assim, melhores condições para o exercício pleno dos seus ofícios. A integração de novas funções e o assumir dessas competências, devidamente reguladas, representam um passo de gigante na desejável actualização da estrutura do funcionalismo público, conferindo “existência” e reconhecimento formais a um conjunto cada vez mais numeroso, variado e decisivo de actividades profissionais inseridas no eixo Cultura-Arte.
Aliás, esta reivindicação cruza-se com outra questão correlata: a qualificação das equipas que trabalham nos equipamentos culturais a integrar a RTCP. Também aqui a multiplicidade de casos é a tónica dominante, quer a nível do número de recursos humanos de que cada entidade dispõe quer da sua formação técnica e grau de conhecimento e actualização. Daí que seja essencial que a tutela desenvolva, paralelamente ao processo de criação da RTCP, algumas medidas específicas visando uma crescente qualificação do circuito cultural no que diz respeito às equipas alocadas aos equipamentos, isto de modo a que realidades que já eram ou são deficitárias possam também, numa perspectiva evolutiva, dar um salto qualitativo atenuando gradualmente contrastes e desigualdades estruturais, e ficando cada vez mais aptas a integrar a rede. (Em síntese: para que entidades mais frágeis e com menor potência não continuem num mesmo estádio de recorrente estatismo, esquecimento ou exclusão.) Após um necessário e muito útil mapeamento e diagnóstico do panorama nacional, a implementação, por parte do MC, de um consistente e ambicioso plano formativo (nas áreas de som, luz, vídeo, produção, comunicação, mediação, entre outros), com uma bolsa itinerante de técnicos experientes, que capacite mais as estruturas locais espalhadas pelo território, constitui uma iniciativa de base assaz pertinente.
Estímulo e apoio à criação e circulação artísticas. Este quinto ponto é igualmente nuclear quando se pensa na credenciação de dado equipamento cultural pela RTCP e, ainda mais, na atribuição de auxílio monetário à sua programação, devendo ser claramente evidenciado no processo de regulamentação da lei. Falo de entidades que, no âmbito da sua intervenção regular, incentivam e asseguram condições logísticas, técnicas e financeiras adequadas para que os artistas possam desenvolver um trabalho atempado, sustentado, harmonioso e partilhado de auscultação-interrogação do mundo e de inventividade. A realização de encomendas, a aposta em co-produções, o estímulo criativo do meio artístico local e regional, o destaque conferido aos projectos emergentes, a dinamização de residências artísticas e a atenção à contemporaneidade (privilegiando pesquisa, experimentação e inovação) constituem elementos centrais nesta lógica, sendo importante que a rede possa exigir quotas mínimas para estas práticas de programação e mediação no âmbito das candidaturas apresentadas para efeitos de apoio financeiro.
Somam-se a essas dinâmicas, em estreita articulação, o trabalho colaborativo, a integração em redes e as parcerias estratégicas entre equipamentos culturais de zonas geográficas próximas ou mais distantes (como em torno de candidaturas a fundos estruturais), os quais devem constituir igualmente uma valência positiva no âmbito da adesão à RTCP, visto permitirem aprofundar uma das dimensões mais deficitárias do sistema cultural actual: as possibilidades e fluxos de circulação de propostas artísticas no território português bem como na esfera internacional.
Ainda no plano dos pressupostos e directrizes programáticos, será certamente prioritário valorizar as candidaturas à RTCP que evidenciem um projecto educativo estruturado, que invistam em estratégias de mediação de públicos e que privilegiem o envolvimento activo da população nos seus múltiplos segmentos. Actualmente, esta tríade revela-se absolutamente epicêntrica enquanto interface para que os objectos artísticos possam, de facto, ter uma repercussão eficaz, transformadora e inclusiva junto dos seus destinatários, através do aprofundamento contínuo de uma relação educativa, social e de intervenção comunitária efectivamente empática, desafiante, activadora e geradora de questionamentos e sentidos.
Por fim, a inevitável temática do financiamento à programação. Defendo que o apoio deve ser concedido para um período de dois ou três anos (não menos), com possibilidade de renovação até um dado limite temporal considerado razoável. Quanto a montantes mínimos e máximos por ano e por entidade, e numa perspectiva realística, um intervalo entre os 75 mil e os 200 mil euros é, a meu ver, uma base de partida que julgo séria, operativa e consistente. As candidaturas ao financiamento devem ser repartidas por vários (três) patamares de valor de apoio em função da densidade e da escala de cada projecto programático em causa. Quanto ao bolo financeiro global a contemplar em orçamento estatal para a RTCP, penso que qualquer valor abaixo da linha (psicológica) dos cinco milhões de euros anuais torna claramente inviável o impacto e a eficácia que se pretendem para esta medida estrutural de fundo – isto de modo a que, numa fase inicial, pelo menos 30 entidades (mesmo que mais equipamentos sejam credenciados) usufruam deste apoio à programação no ano 1.
Na verdade, motivações estratégicas e/ou pragmáticas por parte da tutela para se inclinar, numa primeira etapa, para uma atitude muito fechada e “controlada” (no número de candidaturas a apoiar e na verba a atribuir a essa operação) poderão, muito provavelmente, gerar um impacto negativo, contraproducente e “anestesiante” neste estádio decisivo de arranque da rede. Parece-me vital que, a abrir, não haja uma amostra demasiado tímida ou pouco significativa de entidades seleccionadas nem, por arrasto, uma diminuta abrangência geográfica, tipológica e organizacional das mesmas num corpus que está em embrião. O processo de credenciação da RTCP deve revelar-se inclusivo, sem um nível de exigência excessivo e desadequado da (heterogénea) realidade actual, e não, pelo contrário, dissuasor do seu objectivo primacial, que passará pela maior aglutinação possível, ao longo dos próximos anos, de equipamentos culturais disseminados por todo o território.
Não só, mas atendendo também à presente conjuntura (e aos seus inevitáveis reflexos a curto/médio-prazo), torna-se imperioso não transmitir um sinal contrário, de ambição curta e esperança oca, à constelação cultural e artística, sob pena de a menorizar e fragilizar ainda mais. Falo, no fundo, de privilegiar sim uma sensatez ousada alicerçada no pensamento, na visão, num profundo sentido de realidade e urgência, no rasgo disruptivo, e plasmada em escolhas assertivas, firmes e convictas, não fossem elas o que confere corpo e substância a uma hipótese de amanhã – o que desnuda a preciosa fenda que há em tudo, por onde entra a luz, segundo a poesia de Cohen.