Quem ganha com uma “questão racial”?
A extrema-direita será mais facilmente combatida e a discriminação enfrentada se a causa anti-racismo for capaz de se tornar uma causa cívica de todos, como deve e tem de ser, e não um exclusivo radical de alguns.
Os grupúsculos de extrema-direita que se alimentam do ódio nas redes sociais tiveram um dia em cheio: o país que volta a assistir a um preocupante número de casos de covid-19, ou que enfrenta a maior crise económica da sua história recente, colocou os seus maiores dramas entre parêntesis para discutir as suas ameaças, a sua existência e o seu protagonismo. Uma frase na parede da sede da SOS Racismo, seguida de uma parada de uma dúzia de mascarados empunhando tochas, rematada por um email anónimo enviado a uma dezena de deputadas e figuras associadas à luta anti-racismo bastou para que o país ficasse em alvoroço. Os partidos, as organizações, o Governo, o Presidente e, como não podia deixar de ser, a imprensa dedicaram-se a analisar as causas e consequências de uma escalada dos grupúsculos da extrema-direita. A atenção justifica-se, como se justifica reflectir sobre o ponto aonde chegámos.
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Os grupúsculos de extrema-direita que se alimentam do ódio nas redes sociais tiveram um dia em cheio: o país que volta a assistir a um preocupante número de casos de covid-19, ou que enfrenta a maior crise económica da sua história recente, colocou os seus maiores dramas entre parêntesis para discutir as suas ameaças, a sua existência e o seu protagonismo. Uma frase na parede da sede da SOS Racismo, seguida de uma parada de uma dúzia de mascarados empunhando tochas, rematada por um email anónimo enviado a uma dezena de deputadas e figuras associadas à luta anti-racismo bastou para que o país ficasse em alvoroço. Os partidos, as organizações, o Governo, o Presidente e, como não podia deixar de ser, a imprensa dedicaram-se a analisar as causas e consequências de uma escalada dos grupúsculos da extrema-direita. A atenção justifica-se, como se justifica reflectir sobre o ponto aonde chegámos.
Não vale a pena ser nem cínico nem inocente: há um problema a grassar entre nós e nós não sabemos bem como lhe reagir. Nesse problema, não interessa saber que o racismo, ou qualquer outra forma de discriminação, é recusado pela Constituição e pelas leis que configuram o nosso modelo de existência em sociedade. Não interessa saber se o número de crimes motivados pelo ódio racial aumentou o diminuiu. Não interessa saber se o Estado está ou não a fazer o que está ao seu alcance para garantir aos portugueses de ascendência africana, brasileira ou asiática as mesmas condições de vida que proporciona aos outros. Uma discussão séria, civilizada e empenhada em resolver os problemas de pessoas ou de comunidades específicas tornou-se difícil. Uns dizem que temos de viver com a culpa de sermos um país racista, ou por sermos herdeiros de uma história esclavagista, outros afirmam que quem produz semelhantes afirmações não cabe entre nós. Até o bárbaro assassínio de Bruno Candé dá origem a divergências contaminadas pelo ódio e pela intolerância.
O Presidente da República pediu esta quinta-feira para estarmos atentos às “campanhas e escaladas” que levam à “instrumentalização” de temas que fragilizam a democracia. E pediu que se use inteligência nesse combate. É nesta questão que vale a pena concentrar energias. A condescendência normaliza o racismo e confere-lhe direito de cidade. Mas o radicalismo estimula o radicalismo, exacerba os ânimos e não resolve problemas. A extrema-direita será mais facilmente combatida e a discriminação enfrentada se a causa anti-racismo for capaz de se tornar uma causa cívica de todos, como deve e tem de ser, e não um exclusivo radical de alguns. A causa indispensável da inclusão racial deve regressar ao clima moderado, reformista e progressivo da democracia.