Quem Fala Assim: a gaguez sobe ao palco no Festival Altitudes
Um espectáculo da Interferência – Associação de Intervenção na Prática Artística junta dois músicos numa viagem musical pela gaguez. A estreia é esta quinta-feira, na aldeia de Campo Benfeito.
“Eu sou um gajo um bocado parvo, sem papas na língua, lido mais ou menos bem com isto”, diz-nos Manuel Brásio, momentos depois de as luzes do auditório do Teatro Amador de Sandim se apagarem, assinalando o final de Quem Fala Assim, um espectáculo multimédia sobre a gaguez que terá a sua estreia oficial esta quinta-feira, às 21h30, no Festival Altitudes, na aldeia de Campo Benfeito.
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“Eu sou um gajo um bocado parvo, sem papas na língua, lido mais ou menos bem com isto”, diz-nos Manuel Brásio, momentos depois de as luzes do auditório do Teatro Amador de Sandim se apagarem, assinalando o final de Quem Fala Assim, um espectáculo multimédia sobre a gaguez que terá a sua estreia oficial esta quinta-feira, às 21h30, no Festival Altitudes, na aldeia de Campo Benfeito.
Escondido entre as pequenas casas de Sandim, em tempos uma das maiores freguesias de Vila Nova de Gaia, o Teatro Amador cedeu o seu espaço a Manuel Brásio e José Tiago Baptista, fundadores da Interferência – Associação de Intervenção na Prática Artística), para que pudessem levar à cena uma temática que andava há anos a fervilhar nos seus imaginários. Afinal, a gaguez de Manuel Brásio, característica que o acompanha desde sempre, é há muito motivo de fascínio para o amigo José Tiago: “Pelo lado musical, pelo lado humorístico”, explica.
Só no ano passado, porém, Manuel Brásio – cujos amigos muito o “chatearam” para “fazer música com a gaguez” – decidiu mergulhar na ideia. “Foi uma exploração interessante, mas foi sobretudo um processo de assumir isto”, revela ao PÚBLICO. Coincidentemente, pouco tempo depois de a Interferência submeter a candidatura do projecto à Direcção-Geral das Artes, surgia na Assembleia da República uma deputada gaga, Joacine Katar Moreira, levantando a discussão pública sobre esta disfunção da fala.
A fala é musical
Manuel Brásio e José Tiago Baptista, músicos que trabalham juntos há quase dez anos, estão sentados à boca de cena, com as máscaras postas, numa postura um pouco diferente daquela em que os encontrámos, em formato vídeo, durante o espectáculo. Projectados numa tela, acompanhados por Teresa Silva (viola de arco e violino) e José Silva (percussão), discutem como começar o próximo projecto, sem nunca esquecer… a gaguez de Manuel. “Temos o hábito de fazer vídeos do nosso processo. Achamos piada, e há muitas pessoas que também acham”, observa Manuel. Nasceu aí a ideia deste começo, do motor da história.
O espectáculo arranca. Com o violino, a percussão, umas quantas zaragatas e, claro, com Manuel a tropeçar musicalmente nas palavras. “Como músicos, sempre achámos que a gaguez é musicalmente repetitiva, com um ciclo constante. Investigámos muito e apercebemo-nos de que não temos dois gagos iguais”, continua Manuel. De facto, e como rapidamente o público descobrirá, este espectáculo não se limita à experiência particular do seu protagonista. A Associação Portuguesa de Gagos teve aqui uma grande presença e, ao longo dos 60 minutos da peça, vários são os gagos que dão a cara, partilhando um pouco das suas histórias, enquanto se faz música dos seus discursos.
Manuel já estava familiarizado com o trabalho daquela associação — aliás, desde pequeno que ouve falar de google groups de gagos, e até mesmo de comunidades espalhadas por todo o mundo que se reúnem, criando uma panóplia de sons únicos. “É um free world de gagos”, relata, “gagos de muitas nacionalidades a gaguejarem em várias línguas, é mágico”.
“A fala é musical e é passível de ser musicada. A gaguez não é mais do que essa variação, essa forma de pegar numa melodia e brincar com ela”, complementa José, para logo a seguir esclarecer que Quem Fala Assim é um objecto artístico, e não apenas “um trabalho de promoção da igualdade e da diversidade”. De resto, acrescenta, a sua missão enquanto fundador da Interferência é ensinar música de forma “pedagógica”.
Em busca dos gagos “invisíveis"
O espectáculo que agora se estreia em Campo Benfeito explora diferentes sonoridades, fazendo o público vibrar a muitas velocidades. No limite, trata-se de sugerir uma viagem pelo cérebro de um gago — que talvez, responde Manuel entre gargalhadas, opere de facto a outro ritmo: “Gostamos de acreditar que sim, que há um lado do cérebro que não reage. Eu penso mais rápido do que falo.”
O tema ganhou alguma exposição nos últimos tempos, mas todos os gagos dizem o mesmo: “É sempre um stress gigante quando nos apresentamos pela primeira vez, porque há uma série de malta que não sabe como reagir”, admite Manuel. E o intuito deste quase concerto musicado é “assumir o problema”, preferindo, por exemplo, o primeiro take da primeira cena, pois é aquele em que Manuel mais gagueja. O músico lamenta no entanto que não tenham conseguido chegar aos “gagos invisíveis”, uma vez que aqueles que se predispuseram a falar são os “gagos resolvidos”. A dupla espera que o espectáculo consiga ainda assim chegar àqueles que têm verdadeiramente “medo do contacto”.
Com direcção de actores de Ivo Romeu Bastos, captação e realização de vídeo de Afonso Barros, electrónica de Filipe Fernandes, engenharia de som de Tiago Candal, fotografia de Clara Araújo e design gráfico de Susana Carreiras, esta produção da Interferência já tem a sua estreia no espaço Montemuro completamente esgotada.
Texto editado por Inês Nadais