Curadora demite-se: a FLIP “precisa de uma curadora negra para reinventá-la”

Fernanda Diamant pede demissão da Festa Literária Internacional de Paraty. Celebração desenhada previamente perdeu o sentido, diz.

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Fernanda Diamant dr

Num mundo assolado pela pandemia de covid-19 e pela violência racista, a “celebração” que Fernanda Diamant tinha imaginado para a próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), uma das mais importantes da América do Sul, perdeu o sentido e, assim sendo, a curadora deste importante encontro à volta dos livros não viu outra alternativa se não pedir a demissão. E fê-lo, esta quarta-feira, de acordo com a imprensa brasileira, que reproduz uma nota em que a também jornalista e editora explica os motivos do seu afastamento.

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Num mundo assolado pela pandemia de covid-19 e pela violência racista, a “celebração” que Fernanda Diamant tinha imaginado para a próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), uma das mais importantes da América do Sul, perdeu o sentido e, assim sendo, a curadora deste importante encontro à volta dos livros não viu outra alternativa se não pedir a demissão. E fê-lo, esta quarta-feira, de acordo com a imprensa brasileira, que reproduz uma nota em que a também jornalista e editora explica os motivos do seu afastamento.

“Uma mulher negra, na minha opinião, é a renovação que o evento mais importante de literatura do país precisa”, diz Diamant, num texto que a Folha de S. Paulo reproduz na íntegra

A FLIP deste ano, que esteve para se realizar de 29 de Julho a 2 de Agosto, foi adiada para Novembro devido à emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus e deverá homenagear, depois de muita polémica, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979), autora de North & South (1946).

Recorde-se que a escolha desta que é uma das autoras de eleição de Diamant, feita com a direcção artística da FLIP, foi muitíssimo contestada porque não recaiu apenas sobre uma poeta estrangeira, mas sobre uma autora que escreve em língua inglesa e que, tendo vivido no Brasil entre 1951 e 1971, celebrou o golpe militar de 31 de Março de 1964, que mergulhou o país numa ditadura que se manteria até 1985.

“Para além da homenagem, eu havia decidido que pelo menos metade dos convidados de 2020 seriam autoras e autores negros, o que também seria inédito”, escreve a jornalista formada em Filosofia e também fundadora da revista Quatro Cinco Um, que em 2019 sucedeu a Josélia Aguiar na curadoria da FLIP, escolhendo como homenageado Euclides da Cunha. Eu já tinha a maior parte dos convites confirmados quando veio a covid-19. Desde o princípio defendi que não se poderia definir prematuramente uma nova data para o evento. À minha revelia, a FLIP foi postergada para Novembro. A pandemia se agravou, a condução genocida que o governo federal fez da crise sanitária deixou tudo muito sombrio. Cada vez mais me parecia que a celebração desenhada previamente pertencia a uma outra época e tinha perdido sentido. Não havia nada a ser comemorado. Ainda não há.”

Definindo a festa literária como “um dos oásis culturais do Brasil”, Diamant continua com uma súmula do seu percurso na FLIP e lembrando o debate que houve em torno do racismo de Euclides da Cunha, o facto de quatro dos cinco autores mais vendidos no ano passado serem negros e um indígena (Grada Kilomba, Ayobami Adebayo, Kalaf Epalanga, Gael Faye e Ailton Krenak) ou o que a levou a escolher Bishop para a edição de 2020. “A ousadia de decidir pela primeira vez por uma estrangeira me pareceu um bom desafio: num momento de fechamento de fronteiras e acirramento de nacionalismos me parecia ser oportuno olharmos para fora como modo de olharmos também para dentro.”

Em seguida, na já referida nota, a jornalista-editora volta-se para a questão racial e para o momento presente que se vive no Brasil, mas também fora dele: “Ainda, em meio às denúncias crescentes do movimento negro brasileiro, veio o brutal assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, no dia 25 de Maio, e a poderosíssima reacção impulsionada pelo movimento Black Lives Matter. Esses dias mais intensos de levante anti-racista me fizeram entender que precisamos lutar mais activamente, agir da forma mais contundente possível. Mais que uma programação com autoras e autores negros, a FLIP agora precisa de uma curadora negra para reinventá-la nesse mundo pós pandemia.”

Diamant entende que a forma de melhor contribuir para que isso aconteça é começar por deixar o lugar vago.

A organização da Festa de Paraty já reagiu à tomada de posição de Fernanda Diamant agradecendo o seu “brilhante trabalho curatorial” e garantiu estar para breve o anúncio do sucessor ou sucessora.