Da Coimbra dos Verdes Anos à Lisboa do Stereossauro
Todo este devaneio a propósito da partida de um amigo, o Tiago Gonçalves. Um amigo de Coimbra. Um amigo que acreditava que viveria para sempre e que fez com que todos os miúdos daquela nossa Coimbra acreditassem que deviam lutar ferozmente por um futuro.
Tenho dado comigo a pensar em Coimbra. E não consigo deixar de me sentir traído pela saudade. Passei anos a caminhar pelas ruas labirínticas que irradiavam, como veias, do coração da Faculdade de Direito, convicto que aquele tempo durava para sempre e que o futuro era uma linha horizontal, sem ruga nem mácula, compassado e simples.
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Tenho dado comigo a pensar em Coimbra. E não consigo deixar de me sentir traído pela saudade. Passei anos a caminhar pelas ruas labirínticas que irradiavam, como veias, do coração da Faculdade de Direito, convicto que aquele tempo durava para sempre e que o futuro era uma linha horizontal, sem ruga nem mácula, compassado e simples.
Deixo o calcorrear hipnótico dos Verdes Anos inundar-me de mágoa, e, de uma maneira cobarde, penso que muitos de nós passaram ao lado da promessa que ali encontraram. É estranho que uma música possa construir paredes, pedras da calçada, pessoas e todos os pequenos átomos que populam e constroem as memórias sempre veladas que tenho desses tempos. Mas a minha mente divaga e sinto-me, novamente, no meio da ansiedade de viver daqueles anos e na couraça de imortalidade que todos nós exibíamos com orgulho, certos da inevitabilidade da vitória.
A beleza de Coimbra sempre passou por uma premissa de incompletude e fragilidade humana das pessoas que foi albergando. E estou convicto que existem várias Coimbras, pintadas a preceito pela experiência própria e única de cada estudante que por ali passou. A capa negra é de saudade e se levámos segredos para vida acabámos por deixar, também, algo de profundamente nosso. É também essa mágoa, tragédia solitária e angústia sem nome que vive nos acordes de Carlos Paredes e que é o clamor silencioso daquela cidade. Quantos de nós, saindo de Coimbra, lá permaneceram?
Todos caminhamos para o fim. Mas mesmo esse caminho tem que ter uma réstia de orgulho. Levantar a caveira para morrer. Levantar a cabeça para virar caveira. Qual a derradeira cobardia de, nascendo e morrendo, ir ainda morrendo aos bocados, bocado a bocado, na espuma dos dias?
Volto a Lisboa e a uma sensação de incómodo, latente mas presente, num meio passo entre o sono e uma dureza que persiste. O dilema concreto de sermos confrontados com os mesmos passos diários direccionados à inevitabilidade da loucura. Embrenhados numa pele humana desgastada numa sociedade de desconforto. Desta feita já com os verdes anos de Stereossauro a devolverem-me a lucidez, com um beat de resiliência nestes tempos estranhos que nos obrigam a perseverar.
Todo este devaneio a propósito da partida de um amigo, o Tiago Gonçalves. Um amigo de Coimbra. Um amigo que acreditava que viveria para sempre e que fez com que todos os miúdos daquela nossa Coimbra acreditassem que deviam lutar ferozmente por um futuro. Não por direito, mas por destino. A morte apanhou-o cobardemente nos dentes. A vida foi-nos afastando e, nesta vida, tornámo-nos estranhos. Mas que os nossos projectos inacabados, fantasmas de capa traçada, continuem a caminhar, juntos pela madrugada, com tantos outros amigos, como tantas vezes caminhámos, nas ruas da Alta daquela Coimbra dos nossos verdes anos. Um abraço, Milito.