O fim da exclusividade no ensino médico
Para alem dos números e dos argumentos, o que de facto tem vindo a bloquear o ensino médico não estatal são preconceitos do passado, inconciliáveis com uma sociedade europeia, moderna e democrática, pelo que mudar o paradigma, tal como ocorreu com todas as outras áreas de ensino da saúde, é urgente.
Tem-se assistido nos últimos tempos ao dirimir de argumentos a favor e contra o fim do monopólio estatal no ensino médico.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Tem-se assistido nos últimos tempos ao dirimir de argumentos a favor e contra o fim do monopólio estatal no ensino médico.
Recordo que Portugal tem sido apresentado como sendo o terceiro país, a nível europeu, com mais médicos por mil habitantes, num total de 45.000 médicos inscritos na OM. Todavia, o número dos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde é substancialmente menor (28.600), sendo bem conhecida a distribuição assimétrica, por áreas geográficas, por carreiras e por especialidades. Cite-se a região de Coimbra, onde se registarão 11,6 médicos por 1000 habitantes, e a região de Tâmega e Sousa, onde haverá 1,5 médicos por 1000 habitantes.
Entretanto, apesar da excelente resposta do SNS à recente pandemia, são frequentes as noticias sobre a falta de especialistas no SNS (medicina geral e familiar, cuidados intensivos, pediatria, anestesiologia, etc.), particularmente em determinadas regiões, onde haverá mesmo concursos que ficam vazios, por falta de candidatos.
Por outro lado, ao comparar Portugal com os outros países, não se tem tido em conta o número de médicos que não exercem clínica por trabalharem exclusivamente na gestão, no ensino ou na investigação. Também erradamente se vem contabilizando nas estatísticas um número significativo de médicos aposentados, que já não exercem.
Embora os números possam ser usados como argumentos a favor ou contra a abertura de novos cursos de medicina, não será, contudo, despiciente concluir que o número de profissionais efetivamente a exercer clínica não satisfaz as solicitações atuais.
Acresce que na Europa, segundo dados da Comissão Europeia, o défice de médicos calculado para o corrente ano rondará os 230 mil, o que significa que apenas 13,5% das necessidades estarão asseguradas. E, nas últimas eleições no Reino Unido, Boris Johnson prometeu a contratação de seis mil médicos para o serviço de saúde público.
No entanto, esta real falta de médicos na Europa não tem servido de argumento para autorizar novos cursos, entre os quais, obviamente, não se poderão excluir, como até aqui, os do ensino privado, cooperativo, confessional e, eventualmente, social.
Recentemente, o sr. ministro Manuel Heitor, face à recusa das escolas médicas públicas em aumentar a oferta formativa, aventou a possibilidade da abertura de cursos de medicina nas Universidades de Aveiro e de Évora e, de uma forma pouco isenta, como lhe competia, referiu-se, em particular, a uma escola privada.
Embora relevante, não tem sido argumento convincente o excessivo número de estudantes de medicina no estrangeiro, com os inerentes elevados encargos económicos.
O elevado número de estudantes nas escolas públicas, que vem comprometendo seriamente a formação – e a defesa da universidade pública passa pela sua qualidade –, foi recentemente, entre outros argumentos, evocado por estas escolas, na resposta ao sr. ministro (recorde-se que ao excessivo número de estudante imposto pelo número clausus, inscrevem-se anualmente nas escolas públicas um número de estudantes extra, superior a 25% do número clausus fixado).
Uma vez que o recrutamento dos estudantes de medicina continuará a ter o enviesamento conhecido, valorizando-se exclusivamente a memória e as elevadas classificações, manter-se-ão assim afastados estudantes, com boa formação na área das humanidades, que gostariam realmente de tratar doentes numa dimensão global, e não unicamente técnicos de saúde, especializados, eventualmente bem pagos.
A este propósito, cito Lídia Jorge que, em entrevista recente ao jornal PÚBLICO, referiu: “…tudo isso desaparece (a parte cultural, criativa) com a ideia de que a prioridade é ter uma profissão para poder ganhar dinheiro. É preciso adoptar outra mentalidade, criar pessoas fora do fetichismo tecnológico, dotá-las de uma subjectividade rica… É absolutamente necessário que isso aconteça, que se perceba que as Humanidades têm de funcionar como travão para essa utopia tecnológica de que apenas a ciência e a tecnologia interessam neste mundo.”
Ora, o atual modelo, entre outros aspetos negativos, está de facto a contribuir para a desumanização da medicina, razão pela qual, até por isso, urge criar novas oportunidades de acesso para alguns estudantes.
Na realidade, para alem dos números e dos argumentos, o que de facto tem vindo a bloquear o ensino médico não estatal são preconceitos do passado, inconciliáveis com uma sociedade europeia, moderna e democrática, pelo que mudar o paradigma, tal como ocorreu com todas as outras áreas de ensino da saúde, é urgente.
Passaram 27 anos desde que a Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário viu acreditado o curso de Medicina Dentária, o primeiro não estatal, a nível nacional. Igualmente, há uma dúzia de anos, na assistência à saúde, foram ultrapassadas resistências, disponibilizando-se hoje ofertas de cuidados médicos em serviços públicos, no setor social, nas ordens de beneficência religiosas, em grupos privados e até parcerias público-privadas.
Ninguém põe em causa que a qualidade no ensino médico terá que ser sempre e obrigatoriamente de elevado padrão. O que não poderá continuar a verificar-se é, escudando-se em preconceituosas avaliações ou em pareceres enviesados, a não autorização da abertura de cursos médicos em escolas prestigiadas internacionalmente.
Na verdade, quem termina hoje o curso de medicina e pretenda vir a ser especialistas em Portugal terá que se submeter, a fim de ser seriado, a uma avaliação no final do curso. Se no passado recente se criticava o teste, baseado na memorização de alguns capítulos do livro Harrison – como se para o exercício da medicina a memória fosse o mais importante –, a nova prova, sendo mais equilibrada e orientada para o exercício clínico, permitirá melhor avaliar os conhecimentos adquiridos ao longo dos seis anos de formação.
Em Portugal, no último concurso, cerca de 560 recém-licenciados com as classificações mais baixas não tiveram vaga para iniciar a especialidade. Ao excluir os menos preparados, o teste permite igualmente avaliar o “produto final” de cada escola. O número dos excluídos tenderá mesmo a aumentar, como é exemplo Espanha, onde no último ano cerca de 6500 candidatos ficaram fora do sistema.
Face aos resultados obtidos nesse teste, analisando a origem dos candidatos, será possível aferir facilmente a qualidade do ensino em cada Escola Médica, em particular.
Haverá quem receie esse escrutínio? Penso que não.
Sabemos que numa sociedade aberta a autorregulação imperará, e Escolas que não preparem bem os seus estudantes terão sérias dificuldades em recrutar novos alunos, o que as obrigará a ajustes com vista a melhoria do ensino, ou ao seu encerramento. Para além disso, caso o nível de preparação avaliada no referido teste final for considerada negativa, será sempre possível, em qualquer altura, retirar às respetivas Escolas a autorização para ensinar medicina.
Havendo entre nós exemplos interessantes e inovadores de ensino na área da saúde, com provas dadas a nível nacional e internacional, não será difícil pôr fim a este exclusivo.
Em todo o caso, independentemente dos argumentos a favor ou contra, acabar com esta exceção é uma questão de ética republicana e democrática.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico