“Tratam-nos como baratas.” Polícia libanesa usa gás lacrimogéneo contra manifestantes
Foram detidos 16 funcionários do porto de Beirute, mas os manifestantes querem que a classe política seja responsabilizada pela explosão. Enquanto a solidariedade internacional começa a chegar, nas ruas pede-se a demissão do Governo.
Enquanto decorrem as operações de busca e salvamento nas áreas mais afectadas pela explosão de terça-feira no porto de Beirute, que, segundo o último balanço do Governo, causou pelo menos 154 mortos e mais de 5000 feridos, os libaneses começam a sair às ruas para criticar o Governo e pedir contas pela tragédia. Para sábado, estão previstas manifestações no centro da capital, onde os manifestantes vão homenagear as vítimas e exigir mudanças.
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Enquanto decorrem as operações de busca e salvamento nas áreas mais afectadas pela explosão de terça-feira no porto de Beirute, que, segundo o último balanço do Governo, causou pelo menos 154 mortos e mais de 5000 feridos, os libaneses começam a sair às ruas para criticar o Governo e pedir contas pela tragédia. Para sábado, estão previstas manifestações no centro da capital, onde os manifestantes vão homenagear as vítimas e exigir mudanças.
O tom de crítica ao Governo de Hassan Diab tem vindo a subir e, na noite de quinta-feira, com o Líbano no segundo de 15 dias de estado de emergência, a polícia utilizou gás lacrimogéneo contra dezenas de manifestantes que se juntaram junto ao Parlamento, na capital libanesa, para pedir a demissão do executivo, causando vários feridos.
As autoridades libanesas afirmam que na origem na explosão estão 2700 toneladas de nitrato de amónio, um fertilizante muito utilizado na agricultura, mas também usado para fabricar explosivos, que estavam armazenadas há vários anos no porto de Beirute. O Presidente, Michel Aoun, e o Governo prometeram punir os responsáveis e, na quinta-feira, foram anunciadas 16 detenções de funcionários do porto. Foram também congeladas as contas bancárias de responsáveis da administração portuária e da alfândega.
No entanto, num país que tem sido fustigado pela corrupção e em que a confiança nas instituições e nos políticos é cada vez menor, poucos libaneses acreditam que o Governo seja capaz de assumir a responsabilidade pela tragédia no país.
“Isto é o apocalipse, é um pesadelo, só vemos coisas assim nos filmes. Quem é que trata assim o seu próprio povo? Eles [políticos] nem sequer vêm cá perguntar como estamos. Tratam-nos como se fossemos baratas, como se não existíssemos”, disse Diala Samakieh, residente em Beirute, à Al-Jazeera. “A nossa raiva só vai parar quando virmos aqueles bastardos na prisão”, atirou.
Os protestos contra a classe política libanesa começaram a fazer-se sentir logo durante a tarde de quinta-feira, durante a visita de Emmanuel Macron à capital libanesa, quando a multidão que o recebeu gritou por uma “revolução”. “Afastem o Governo. Não há futuro aqui para nós se os políticos actuais ficarem. Preferimos ser colonizados do que morrer aqui”, afirmou Jana Harb, de 17 anos, citada pelo New York Times.
Os libaneses começaram a sair à rua em força em Outubro do ano passado, protestando contra a crise económica no país, a mais grave desde o final da guerra civil (1975-1990), levando à queda do executivo de Saad Hariri. Com a nomeação de Hassan Diab para primeiro-ministro, num Governo que conta com o apoio do Hezbollah, os libaneses não saíram das ruas, mas as manifestações foram perdendo força, sobretudo devido à covid-19.
As manifestações de quinta-feira e a fúria que tem invadido as redes sociais no país na sequência da explosão no porto de Beirute, levam a crer que a contestação ao Governo suba de tom nos próximos dias.
Governo sabia da carga
Às denúncias de corrupção e à exigência de soluções para a crise económica que o país atravessa, que deixou milhares sem conseguirem comprar carne e, para muitas famílias, nem o pão está garantido, os libaneses exigem agora respostas às dúvidas que persistem sobre a explosão da última terça-feira.
Uma das questões que continua sem resposta é como é que uma quantidade tão elevada de nitrato de amónio ficou armazenada durante tantos anos, sem as devidas condições. As autoridades afirmam que o fertilizante estava armazenado por ordem de um tribunal, depois de o navio de carga Rhosos, de bandeira moldava, que partiu da Geórgia com destino a Moçambique, ter feito uma paragem no porto de Beirute.
O navio, que pertencia a Igor Grechushkin, cidadão russo com residência em Chipre, ficou abandonado. Mas, segundo, Boris Prokoshev, o antigo capitão do navio, o Governo libanês estava a par de tudo. “Eles sabiam muito bem que havia carga perigosa lá”, disse à AP Prokoshev, de 70 anos. “Foi o Governo do Líbano que provocou esta situação”, acusa. A polícia de Chipre interrogou um cidadão russo em relação com o navio Rhosos - mas não teve sucesso em localizar Grechushkin, diz a Reuters.
Os responsáveis pelo porto, segundo a Reuters, dizem que enviaram várias cartas para as autoridades para que a carga fosse removida do local, mas nenhuma medida foi tomada.
Solidariedade
Enquanto se apuram responsabilidades, os libaneses, apoiados por voluntários, continuam a limpar os destroços e, apesar da indignação, há também manifestações de solidariedade, com várias pessoas a oferecerem-se para consertar portas, pintar paredes ou substituir janelas que ficaram partidas com a explosão. Muitos libaneses na diáspora lançaram também campanhas de angariação de fundos online para transferir dinheiro para os seus familiares no país.
Como o Líbano importa grande parte da sua comida, particularmente cereais, a destruição no porto deixou o país em grande dificuldade, depois de mais de 85% do seu trigo ter sido destruído. O silo de cereais do porto, uma estrutura com capacidade para 120 mil tonelada de cereais, ficou inutilizável.
O Programa Alimentar Mundial da ONU teme que os danos no porto “exacerbem uma situação de segurança alimentar que já era sombria” e disponibilizou-se para enviar farinha de trigo e cereais para o Líbano.
Beirute tem contado também com a solidariedade que tem sido manifestada por vários países, incluindo Portugal, que se disponibilizaram para enviar ajuda imediata para o Líbano – a União Europeia anunciou que vai disponibilizar 33 milhões de euros em fundos de emergência para as necessidades imediatas dos libaneses, sobretudo na recuperação dos hospitais. Já os Estados Unidos, anunciaram esta sexta-feira um pacote de ajuda inicial de 17 milhões de dólares.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os estragos causados nos hospitais levaram à perda de pelo menos 500 camas e foram destruídos 17 contentores com material médico e de protecção individual, essencial em temos de pandemia da covid-19.
A UNICEF alertou que pelo menos 100 mil crianças ficaram com as casas danificadas e estão desalojadas – o Governo estima que 300 mil pessoas possam ter ficado sem casa devido à explosão –, e pelo menos 120 escolas, que servem 55 mil crianças na capital, sofreram estragos.