O Tribunal Constitucional e o Portugal dos pequeninos
Felizmente para nós, ainda temos um Tribunal Constitucional para mostrar à Europa que, por cá, não existe apenas o Portugal dos pequeninos.
No passado dia 15 de julho, o Tribunal Constitucional português proferiu uma decisão aguardada com grande expectativa. Era nesse processo chamado a pronunciar‑se sobre a possibilidade de apreciação de uma norma de Direito da União Europeia à luz da Constituição da República Portuguesa, num caso em que tal norma já havia inclusivamente sido objeto de um acórdão do Tribunal de Justiça da União.
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No passado dia 15 de julho, o Tribunal Constitucional português proferiu uma decisão aguardada com grande expectativa. Era nesse processo chamado a pronunciar‑se sobre a possibilidade de apreciação de uma norma de Direito da União Europeia à luz da Constituição da República Portuguesa, num caso em que tal norma já havia inclusivamente sido objeto de um acórdão do Tribunal de Justiça da União.
A questão de fundo colocada ao TC era a mesma sobre a qual o TC alemão se pronunciou no dia 5 de maio, num acórdão cujas ondas de choque ainda se fazem sentir e sobre o qual já se escreveu nas páginas deste jornal.
No acórdão 422/2020, relatado pelo conselheiro José António Teles Pereira e aprovado por unanimidade, o TC examinou extensa e exaustivamente o processo de construção europeia e a natureza do Direito da União, a relação entre este e os Direitos nacionais e, acima de tudo, o papel que cada Estado-membro (e, consequentemente, os respetivos sistemas judiciais nacionais) se vinculou a ter no todo que constitui a União Europeia. Numa decisão a todos os títulos exemplar e reveladora de uma perfeita compreensão do correto relacionamento entre a União e os Estados que a compõem, o Tribunal Constitucional – não renunciando ao seu papel de garante do princípio fundamental do Estado de direito democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa – decidiu que só se torna legítima a sua intervenção quando, no âmbito próprio do Direito da União, aquele princípio “não goze de valor paramétrico materialmente equivalente ao que lhe é reconhecido na Constituição”. Conclui o TC que “uma outra perspetiva menos exigente banalizaria a intervenção do Tribunal Constitucional” e seria um “aberto desafio à aceitação da projeção do Direito da União Europeia na ordem interna nos termos pelo próprio definidos”, levando à criação de um “mecanismo interno, de fácil ativação, onde a constante discussão deste, à margem e em aberto desafio aos seus próprios termos, originaria um sistema nacional espúrio, sem qualquer respaldo no quadro constitucional de interação entre as ordens jurídicas nacional e europeia”.
Esta decisão (cuja rápida tradução integral para inglês seria desejável) tem vindo a suscitar reações em toda a Europa. Com ela, o TC português tomou clara posição no debate europeu e afirmou-se mais uma vez (como já tinha sucedido com os acórdãos proferidos sobre as medidas de austeridade) como uma voz prestigiada e credível no panorama judiciário europeu. As comparações com a decisão do TC alemão são inevitáveis e, lendo ambas, não é de todo exagerado dizer que o acórdão português de 15 de julho dá uma lição ao BVerfG.
Ironicamente, na véspera de tão importante decisão do TC, o primeiro‑ministro português foi a Budapeste garantir a Viktor Orbán que não seria Portugal a estragar-lhe os planos de ver fora da discussão do pacote financeiro europeu a chamada “Rule of Law conditionality” – o respeito do Estado de Direito como condição para o recebimento de fundos europeus –, contrariando o que muitos Estados defendiam e os apelos de inúmeras ONG’s defensoras dos direitos humanos e da independência do Poder Judicial, como a MEDEL.
Esta posição do Governo português é totalmente incompreensível. Estrategicamente foi nula, pois face à unanimidade necessária para a aprovação do pacote financeiro, nunca a condição nos termos inicialmente propostos viria a ser aprovada – ou seja, a posição do PM foi totalmente desnecessária e veio dar má imagem internacional ao país, transmitindo a ideia de que a pequena vitória que acabou por ser afinal conseguida o foi sem o apoio português. Diplomaticamente foi desastrosa, porque apenas serviu para colocar Portugal do lado dos Estados incumpridores das regras do Estado de Direito, sem nada conseguir em troca. Politicamente foi calamitosa, porque Portugal assumirá a presidência da UE no próximo semestre e Viktor Orbán e os demais líderes autoritários que têm vindo a ganhar poder na Europa não deixarão de bater à porta de António Costa para lhe cobrar a promessa.
Afirmou o PM que “os valores não se vendem” e que tudo deveria ser tratado no âmbito dos procedimentos do art.º 7.º do TUE. Uma decisão de condenação no final destes procedimentos depende de uma votação unânime – precisamente por isso, neste momento são a Hungria e a Polónia quem mais pressão tem feito para a sua conclusão, pois sabem que nunca haverá a necessária unanimidade (contam com o voto contra recíproco) e poderão exibir a decisão de não condenação como uma vitória e “a prova” de que nenhum atropelo têm feito ao Estado de Direito. Ou o PM tem perfeita noção disto – e a sua afirmação foi feita de má-fé – ou não o sabe – e essa ignorância é trágica para quem vai assumir a presidência da UE.
No auge da polémica gerada pela publicação de caricaturas de Maomé por um jornal, o PM dinamarquês recusou‑se a pedir desculpa, dizendo que a Dinamarca nunca pediria desculpa pelo exercício de um direito fundamental previsto na sua Constituição. Fê‑lo contrariando pressões de vários quadrantes políticos (incluindo membros do seu próprio partido) e mesmo perante o risco de ataques terroristas. É nestes momentos – não na apresentação dos números do défice – que se revelam os grandes estadistas, para quem os princípios contam.
Felizmente para nós, ainda temos um Tribunal Constitucional para mostrar à Europa que, por cá, não existe apenas o Portugal dos pequeninos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico