Jornalismo no Estado de Emergência: mais tecnologia, menos trabalho de terreno, mais instabilidade laboral, menos expectativas
Estudo sobre os Efeitos da Declaração do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19, que alia Universidade de Minho, Coimbra e Lisboa, põe a nu a crescente precarização da profissão e crise nos média.
Muito trabalharam os jornalistas durante o Estado de Emergência para informar a sociedade, em particular, sobre a pandemia e os seus efeitos. Alguns agoniaram-se para conciliar a vida profissional com a vida pessoal e familiar. Houve mais recurso a tecnologia, menos trabalho de terreno e surgiram algumas inquietações éticas e deontológicas. Findo esse período, nota-se mais instabilidade laboral e menos expectativas. Acentuou-se a precarização da profissão.
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Muito trabalharam os jornalistas durante o Estado de Emergência para informar a sociedade, em particular, sobre a pandemia e os seus efeitos. Alguns agoniaram-se para conciliar a vida profissional com a vida pessoal e familiar. Houve mais recurso a tecnologia, menos trabalho de terreno e surgiram algumas inquietações éticas e deontológicas. Findo esse período, nota-se mais instabilidade laboral e menos expectativas. Acentuou-se a precarização da profissão.
O retrato resulta do Estudo sobre os Efeitos da Declaração do Estado de Emergência no Jornalismo no Contexto da Pandemia Covid-19, uma parceria da Universidade de Lisboa, da Universidade do Minho e da Universidade de Coimbra, com o apoio da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, do Sindicato de Jornalistas e da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação.
O inquérito ficou disponível para todos os detentores de carteira profissional que o quisessem preencher entre os dias 22 de Maio e 8 de Junho de 2020. A amostra de 890 jornalistas que o completaram, 799 tirando os inactivos, não é representativa deste grupo profissional. Os resultados, todavia, consideram-se “válidos para retirar tendências e conclusões rigorosas em cada uma das dimensões de análise”.
Das redacções para casa
Antes do estado de emergência, 65,5% dos jornalistas trabalhavam a partir de uma redacção. Faziam-nos não só os pertencentes aos quadros das empresas, mas até alguns dos que trabalham em regime de avença (28,8%) ou recibo verde (20,6%). Durante o estado de emergência, isso alterou-se por completo. Mais de dois terços passaram a trabalhar a partir de casa (66,7%). Só um reduzido grupo (17,6%) continuou a fazer da redacção o seu local de trabalho principal. Até pela natureza dos meios, essa proporção era maior entre os da televisão (47,8%) e os da rádio (36,3%).
No confinamento, os jornalistas serviram-se mais do que nunca do email e do telefone para trabalhar e não se coibiram de experimentar novas plataformas de videoconferência e reunião online. O teletrabalho exigiu, como menciona o relatório divulgado esta quarta-feira, “material informático e equipamentos de ligação à Internet, novas fórmulas de acesso remoto ao trabalho da redacção, software de gravação e edição de conteúdos ou, ainda que numa menor expressão, meios de protecção e segurança, como perches ou outras formas de proteger os equipamentos”. E alguns jornalistas tiveram de adquirir parte disso.
O recurso a novas ferramentas é entendido por estes profissionais como “benéfico ou mesmo muito benéfico”. Facilita o acesso, poupa tempo. Não é, porém, igual a ir ao sítios, observar, cheirar, conversar cara a cara com os protagonistas. Naquele tempo, muitos jornalistas deixaram de sair em reportagem para verificar, em loco, o que estava a acontecer ou falar com as fontes nos seus contextos (de 11,5% para 33,5%).
O investigador Carlos Camponez (CEIS20/UC) põe ênfase no modo como os próprios jornalistas lidaram com isso. O estado de emergência levantou questões deontológicas à maior parte (56,7%). Entre os menores de 30 anos mais ainda (65,9%), contrariando alguma tendência para achar que os mais novos se preocupam menos com estes aspectos. No centro das suas preocupações estavam o rigor, o acesso às fontes de informação, a manutenção da independência. E os direitos dos cidadãos à privacidade, à não discriminação.
O “jornalismo sentado"
“A consequência mais evidente desta migração dos jornalistas da redacção para casa prende-se com o enfatizar de uma prática jornalística a que alguns sociólogos franceses chamam o ‘jornalismo sentado’, feito a partir da secretária, mais dependente dos assessores de imprensa, de um contacto indirecto com as fontes”, comenta João Miranda (CEIS20/UC), também ele membro da equipa de investigadores.
“O jornalismo em geral respondeu bem à pandemia”, avalia a presidente do Sindicato dos Jornalistas, Sofia Branco. “Respondeu como tem de responder. Tem de prestar um serviço público. Tem de esclarecer as pessoas com calma e serenidade. Acho que isso, em geral, foi feito. Mas o jornalismo já tinha fragilidades, uma delas era a falta de reportagem e de investigação, e isso piorou. Vai-se menos à rua.”
Aquela dirigente sindical ressalva que mesmo à distância é possível fazer trabalho fundamental, como ouvir os especialistas em várias matérias. E que diversas factores podem explicar esta redução de idas ao terreno. Os órgãos de comunicação julgaram mais prudente e deram essa orientação às equipas? As fontes quiseram evitar o contacto presencial? Os jornalistas tinham ascendentes ou descendentes a cargo e não quiseram arriscar?
Com efeito, o estudo, que envolveu oito investigadores, aborda a questão da conciliação entre vida profissional, pessoal e familiar. Quase um terço (30,7%) dos jornalistas julga que o seu trabalho foi prejudicado pela fusão entre as várias esferas da vida. Esta percepção era mais elevada entre as mulheres (34,4%) do que entre os homens (28,6%) e “preponderava entre os inquiridos que mencionaram ter dependentes ao seu cuidado”.
A mudança de cenário também teve consequências no trabalho de equipa: passou de 66,3 para 24,6 a percentagem de jornalistas que contactavam numa base diária ou quase diária com outros jornalistas do seu órgão de comunicação. “Este contacto é fundamental na discussão das matérias que vão desenvolvendo, na definição do que é a agenda, mas também na discussão de questões de foro laboral”, sublinha Miranda. Em teletrabalho, “o contacto faz-se sobretudo com as hierarquias em detrimento de colegas.” Isso enfraquece a autonomia dos jornalistas. O jornalismo torna-se mais concentrado e hierarquizado, e, portanto, menos plural, menos abrangente, menos rico.
O inquérito põe ainda a nu a degradação das condições de trabalho. “A situação do emprego dos jornalistas agravou-se, afectando directamente 11,8% da amostra”, lê-se no relatório. “Estes casos resultam, entre outras, de situações de novos desempregados (17%), de jornalistas abrangidos pela aplicação do lay-off (11,1%) e de profissionais que viram chegar ao fim a sua colaboração em regime de freelance.”
O “desastre” laboral
“Em termos laborais é um desastre”, resume Sofia Branco. A crise nota-se em todo o sector, mais ainda nos média regionais. “O sector já era frágil. O diagnóstico está feito há que tempos. O Governo recebeu em Dezembro uma série de propostas para reflexão, que nem começaram a ser discutidas. Desde então, antecipou uma única medida: a compra de publicidade. O anúncio é de Abril. O dinheiro ainda não começou a chegar”, prossegue. “Não há nenhuma medida extraordinária para o sector, como há para a cultura - e bem.”
As expectativas dos profissionais que se mantêm no activo são muito baixas. Antes da declaração do estado de emergência, 5,4% dos jornalistas acreditavam ser muito provável perder o trabalho a curto prazo. No fim, 21,7%. Mais de metade (59%) já julgava ser baixa ou muito baixa a possibilidade de encontrar novo emprego em caso de perda do actual. Findo aquele período, essa desesperança alastrara à esmagadora maioria (83,5%).
O ponto de partida já era baixo. Quase metade (47%) dos inquiridos tinha um rendimento bruto mensal igual ou inferior a 900 euros. As expectativas de não progressão na carreira já eram dominantes (62,9%) e tornaram-se mais expressivas (77,6%). Há uma constatação de estagnação. Subiu de 3,5 para 14,3 a percentagem dos que entendem como muito provável e de 23,7 para 30,7 a dos que entendem como provável abandonar a profissão.
“O jornalismo exige muito engajamento pessoal e social”, conclui Carlos Camponez. “São muitas horas de trabalho. As pessoas não vão para jornalismo para ganhar dinheiro. Se vão, estão equivocadas. Têm de ter outros motivos para permanecer.” Fala em sentido de serviço público, espírito de missão, vocação mesmo. É isso que faz com que muitos insistam em trabalhar nesta área, apesar de tudo.
A quem julga os jornalistas dispensáveis, o colectivo de investigadores trata de afastar eventuais ilusões. A proliferação de conteúdos na Net, refere logo na introdução do documento agora divulgado, só “tornou ainda mais clara a importância de mediadores que, profissionalmente, têm a responsabilidade social de garantir a qualidade da informação, assegurar critérios capazes de distinguir o relevante do acessório, diferenciar a notícia fundamentada do rumor e priorizar o interesse público relativamente a estratégias privadas”.