Cada um come gelados como quiser, até com a testa: chama-se a isso democracia!
Senhor deputado André Silva, nós, médicos veterinários, continuaremos a comer gelados da forma convencional: com a mesma parte do corpo que podemos utilizar e utilizaremos para nos exprimir sempre que nos assolem. E sempre de forma racional e de consciência tranquila.
Sem grande perplexidade lemos os artigos de opinião do sr. deputado André Silva em dois jornais nacionais na passada semana. Nada acrescentaram àquilo que tem sido a sua postura e do seu partido. A típica auto-superioridade moral e atrevimento ignorante. Imiscuindo-se em áreas que julga dominar apenas com retórica banal. Desta vez em discurso de ofensa e ataque cerrado. Desta vez à Ordem dos Médicos Veterinários e à maioria dos seus profissionais, e ao setor da produção animal e alguns dos seus agentes.
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Sem grande perplexidade lemos os artigos de opinião do sr. deputado André Silva em dois jornais nacionais na passada semana. Nada acrescentaram àquilo que tem sido a sua postura e do seu partido. A típica auto-superioridade moral e atrevimento ignorante. Imiscuindo-se em áreas que julga dominar apenas com retórica banal. Desta vez em discurso de ofensa e ataque cerrado. Desta vez à Ordem dos Médicos Veterinários e à maioria dos seus profissionais, e ao setor da produção animal e alguns dos seus agentes.
Como se trata, essencialmente, de um julgamento de carácter de uma classe profissional, devemos dizer que os médicos veterinários não recebem lições de moral de V. Exa.
Que pretenda médicos veterinários, como diz, do século XXI, que apoiem as suas ideias e preconceitos é natural, e até pode ser salutar, desde que o defendam de forma civilizada, sem injúrias e dentro da conduta deontológica. O que, diga-se, é raro. É como existirem no Parlamento deputados que, sendo ideólogos radicais em determinados assuntos, tenham o direito democraticamente consagrado de os discutir e votar; prevalece sempre a maioria, que deve ser a luz da razão democrática.
Se V. Exa. não sabe, os vários cursos de medicina veterinária, em Portugal, sobretudo desde o século XX (médicos veterinários do século XX, portanto), incluem e têm incrementado o destaque de matérias e Unidades Curriculares sobre ética e bem-estar animal, pelo que o seu ataque é também um ataque à Academia. Esta formação, consagrando a autonomia universitária (Lei 62/2007), segue critérios pedagógicos para que se garantam competências internacionalmente requeridas, de que pode ser dado como exemplo as indicadas pela OIE – The World Organisation for Animal Health. Há em Portugal e no Mundo, cada vez mais, profissionais que se dedicam especificamente a esta área, com reconhecimento pelos seus pares. Não, não é o reconhecimento das redes sociais, que parece ser hoje a base de apoio consagrada por muitos.
Há depois a formação informal e de carácter e personalidade, que não é veiculada pela Academia, que sai do propósito deste texto, e que não nos compete discutir.
As Ciências Biomédicas, as Ciências Veterinárias e as Ciências Agrárias têm evoluído tremendamente na procura de conhecimento e métodos que melhorem a proteção animal. Com resultados concretos! A par do que tem ocorrido para a salvaguarda dos direitos do Homem. Deve ser esse, para quem não saiba, o desiderato de qualquer profissional que trabalhe com animais. E, havendo interesse construtivo em melhorar, estaremos todos solidários em que se amplie a legislação, a fiscalização e se progrida. Agradecem-se todos os contributos válidos e honestos.
E isto inclui, por exemplo, os conhecimentos e evolução científica internacional sobre os métodos de abate e eutanásia de animais, que tanto atormentam V. Exa. A título de exemplo, podemos recomendar-lhe a leitura, que certamente desconhece, do “AVMA Guidelines for the Humane Slaughter of Animals, 2016". Também chamar a atenção que a legislação portuguesa e da União Europeia contempla e regula, através de inúmeros diplomas, os métodos e as práticas de proteção animal. E os médicos veterinários são alguns dos profissionais que fazem cumprir estas regras e que as tentam melhorar constantemente. Quem não o quererá? Não, não existem médicos veterinários “de primeira”, que praticam o bem ‘salvando’ animais, e outros, “de segunda”, que odeiam animais, porque profissionalmente trabalham na fileira de produção animal, nos matadouros, nas fábricas de lacticínios, ou que tenham de praticar a eutanásia, como medida última de salvaguarda do sofrimento animal ou garantia de Saúde Pública. Esta última área da Medicina Veterinária não tem sido, para o partido de V. Exa., muito referido, talvez seja fácil de entender porquê, na senda das vossas prioridades e desfasamento da realidade.
Vamos à realidade. Todas as opções alimentares, sejam por motivos de saúde, religiosos ou de ética individual, devem ser respeitadas. No entanto, vivemos numa sociedade em que os animais são consumidos para alimentação, em que existem produtores pecuários, indústria de alimentos para animais, transportadores, matadouros, talhos, comerciantes e consumidores, para referir apenas o mais básico desta fileira que tanto odeiam. É aqui que nos devemos centrar.
Estes animais, em todo o Mundo, e desde que o Homo sapiens passou de recolector a agricultor, são uma das bases da Alimentação Humana, o que permitiu que V. Exa. chegasse ao lugar que agora ocupa. E isso deveria trazer-lhe responsabilidades acrescidas e algum respeito. Esses animais utilizam recursos vegetais naturais que, caso desconheça, não são a base da alimentação vegetariana humana que quase todos praticamos. Conhecendo os ecossistemas da produção, facilmente isto é entendível! Os médicos veterinários, e outros profissionais, mais não fazem do que assegurar que aquilo que V. Exa. e o seu partido repetidamente advogam como vosso, nomeadamente a proteção animal! Será caso para perguntar também, a talhe de ricochete das suas perguntas em artigo anterior: afinal, que interesses serve o seu partido? Porque interesses está capturado?
Como mero exemplo, agora fresco, o sr. deputado já se congratulou com uma distinção atribuída à Carne Maronesa (DOP), pela sua excelência? Num tipo de produção, como muitos outros que existem em Portugal, que valorizam o bem-estar animal e a produção sustentável, valorizando e protegendo, ao mesmo tempo, recursos naturais classificados em áreas de Parque Natural e da Rede Natura 2000, fixando população, prevenindo os incêndios rurais, promovendo o turismo, etc. Isto é o país real pelo qual devemos lutar!
Atacar, por exemplo, a exportação de animais vivos que se faz em Portugal, como em muitos outros países da UE, por fundamentalismo, é não acautelar a importância económica que isso tem para o país e ignorar que estas exportações atendem, ainda, a opções religiosas que devem ser também internacionalmente respeitadas. E que existe legislação nacional e internacional que regulamenta esta atividade. Se pode ser melhorada, todos estaremos disponíveis. Ao invés de acusar, sempre sem fundamentar, que a DGAV está capturada “por uma visão marcadamente produtivista e de defesa dos interesses do sector pecuário”, não percebe que esse é, fundamentalmente, um interesse do país. E que, já agora, nesse mesmo organismo do Estado deve permanecer a tutela da proteção animal, pois é óbvio que a produção, sanidade e bem-estar animal estão inexoravelmente interconectados. Em todas as espécies! Há muito que se sabe só ser possível garantir uma boa saúde animal e eficiente produção assegurando o melhor bem-estar animal. É uma regra básica da Medicina Veterinária e da Zootecnia. Lamentamos que o desconheça quando esse deve ser o desafio de todos nós.
E é especialmente curioso como a manobra política que agora se pré-anunciou de forma atabalhoada (sim, porque nada concreto existe, e aguardamos) ocorra quando foi criado, pelo Governo, um grupo de trabalho com esse propósito (Despacho 6928/2020) e a própria DGAV tivesse, no início da pandemia covid-19, formado no seu seio grupos de trabalho com técnicos próprios e consultores externos, na senda da tal constante melhoria e progresso na área da proteção animal. E com os recursos de que dispõe, dentro do trabalho vastíssimo desta direção geral. Pedir reforço de meios não foi nunca, para muitos, prioritário, verdade? E todo o conhecimento anterior e trabalho será para desperdiçar? Não tem sentido algum!
Relativamente à Tauromaquia, que surge sempre como arma de arremesso, obviamente que, num tema em que há legítimas opiniões divergentes, não pode jamais a OMV fazer a vontade a qualquer entidade que pretenda, sobretudo, usar essa arma como argumento. Nem é à OMV que compete emitir as opiniões científicas que pretende obter, a seu favor. Curiosamente, o sr. deputado esqueceu-se que a tauromaquia e questões a esta associadas já foram discutidas no Parlamento várias vezes. Com o resultado democrático e legal que se conhece. Não aceitar a democracia sistematicamente é assumir que se não é democrático.
Fica ainda a dúvida, como cidadão, se o sr. deputado e o seu partido, com os vastos preconceitos assumidos, terão, em sede parlamentar, capacidade e responsabilidade para votar outros assuntos eventuais, com questões éticas complexas, como sejam a interrupção voluntária da gravidez, a procriação medicamente assistida ou a eutanásia em Humanos.
Nós, médicos veterinários, continuaremos a comer gelados da forma convencional: com a mesma parte do corpo que podemos utilizar e utilizaremos para nos exprimir sempre que nos assolem. E sempre de forma racional e de consciência tranquila.
P.S.: Já agora, um pequeno preciosismo técnico para um próximo artigo: os animais de consumo são abatidos. Os outros são eutanasiados. E, já agora, esta última é uma das atribuições mais angustiantes dos médicos veterinários e de maior responsabilidade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico