Mais de mil criticam “tentativa de desvalorização” do homicídio de Bruno Candé
Carta escrita por companhia de teatro Casa Conveniente já tem mais de mil assinaturas. O grupo diz-se “incrédulo e inquieto à tentativa de silenciamento e desvalorização da gravidade” do homicídio. Pede discussão pública sobre discriminação.
O grupo de teatro Casa Conveniente afirma-se “incrédulo e inquieto à tentativa de silenciamento e desvalorização da gravidade” do homicídio do actor Bruno Candé e exige, numa carta aberta, que a sua memória seja tratada com “dignidade”.
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O grupo de teatro Casa Conveniente afirma-se “incrédulo e inquieto à tentativa de silenciamento e desvalorização da gravidade” do homicídio do actor Bruno Candé e exige, numa carta aberta, que a sua memória seja tratada com “dignidade”.
Considera que se deve “iniciar uma discussão pública que chega com décadas de atraso e na qual os indivíduos e as associações antirracistas têm sido vozes a clamar no deserto”.
“Significa tomar uma posição inequívoca de rejeição, por parte de toda a sociedade portuguesa deste crime, da discriminação que lhe está na base e de todas as injustiças que lhe estão associadas”, pode ler-se no documento que conta já com mais de mil assinaturas de actores, produtores, programadores culturais, músicos, bailarinos, escritores, cineastas, e outras personalidades.
“Temos esse dever e essa obrigação, não só enquanto cidadãos mas enquanto artistas”, sublinham.
Para o grupo de teatro tem havido “uma agressão sistemática e porventura coordenada à memória do Bruno Candé - alguém que já em 2017 tinha sofrido um atropelamento e fuga que o deixou entre a vida e a morte, bastante debilitado e cujas sequelas estava corajosamente a combater - numa tentativa cínica e despudorada de justificar o injustificável, num desrespeito pelo estatuto de vítima que é punível pelo código penal da República Portuguesa” e cita o artigo 185.º do Código Penal, sobre ofensa à memória de pessoa falecida.
Candé trabalhava na Casa Conveniente desde 2011, onde “encarnou com a sua vida a capacidade de superação da comunidade da Zona J” de Chelas, na capital, onde desde 2014 se localizava a sede do grupo.
Na carta, a Casa Conveniente acusa “alguma imprensa e alguns sectores da sociedade portuguesa de silenciamento e desvalorização da gravidade” do crime que matou o actor negro.
Escreve a Casa Conveniente que há uma “tentativa de tornar a vítima em suspeito, acompanhada duma prolongada protecção da identidade do homicida, [que] visa criar uma inversão na responsabilidade pelo crime que é perigosa para toda a sociedade e que pode ter consequências graves e incontroláveis”.
Referindo-se à comunidade de Chelas, na freguesia lisboeta de Marvila, a Casa Conveniente refere que “além da pobreza que afecta tantas comunidades neste país, esta tem de enfrentar as diferentes formas de racismo que atravessam a sociedade portuguesa”.
“A morte violenta do Bruno Candé, com uma evidente motivação racista, obriga-nos a olhar com atenção e cuidado para as circunstâncias, históricas, sociais e políticas que tornam um acontecimento destes possível. Obriga-nos a confrontar fantasmas que nos deixam desconfortáveis porque nos devolvem uma imagem de nós próprios que não corresponde à que gostaríamos de ter”, lê-se na carta.
Entre as centenas de signatários, contam-se nomes como os de Albano Jerónimo, Alexandra Lencastre, Aline Frazão, Beatriz Batarda, Bárbara Bulhosa, Benedita Pereira, Billy Woodberry, Branko, Bruno Nogueira, Camané, Carlão, Carloto Cota, Catarina Furtado, Cláudia Varejão, Diogo Varela Silva, Dino d"Santiago, Diogo Infante, Fernando Alvim, Filomena Cautela, Gisela João, Grada Kilomba, Herman José, Horácio Frutuoso, João Canijo, João Pedro Rodrigues, João Fernandes, Jorge Silva Melo, José António Tenente, Kalaf Epalanga, Leonor Teles, Martim Sousa Tavares, Miguel Lobo Antunes, Miguel Valverde, Nuno Cardoso, Nuno Lopes, Nuno Markl, Nuno Vassallo e Silva, Ondjaki, Paulo Furtado, Pedro Costa, Regina Guimarães, Rita Blanco, Rui Chafes, Sam The Kid, Samuel Úria, Susana de Sousa Dias ou Tiago Rodrigues.
Na sexta-feira, centenas de pessoas homenagearam, em Lisboa, o actor Bruno Candé, e exigiram medidas proactivas para combater o racismo, um problema que “vem de há muitos séculos”. Às 20h, a PSP disse estarem concentradas pelo menos mil no Largo de São Domingos, em Lisboa, a organização calcula que desde que começou, às 18h, tenham passado entre 3 a 4 mil. Foi ainda homenageado nesse dia, e no sábado, em várias cidades como Porto, Lagos, Viseu, Coimbra, Beja ou Faro.
Na véspera, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, lamentou o “brutal homicídio” do actor.
“As circunstâncias da morte de Bruno Candé obrigam-nos a pensar sobre o muito que ainda nos cumpre fazer na luta contra a violência e o quanto a cultura, na sua dimensão conciliadora e de aproximação, pode contribuir para isso”, afirmou a ministra, em comunicado.
Bruno Candé Marques, 39 anos, morreu no dia 25 de Julho após ter sido baleado, várias vezes, em plena Avenida de Moscavide, concelho de Loures.
O suspeito do homicídio, Evaristo Carreira Martinho, de 76 anos, foi detido no local e aguarda julgamento em prisão preventiva. Várias testemunhas ouviram o arguido proferir insultos racistas contra o actor e ameaçá-lo de morte, pelo menos três dias antes.
O actor Bruno Candé nasceu em Lisboa, em 1980. Iniciou o seu percurso no grupo de teatro da Casa Pia, ainda na adolescência, tendo posteriormente frequentado o curso de formação teatral do Chapitô, onde chegou em 1995 e participou em vários espectáculos, sob direcção do encenador Bruno Schiappa.
Trabalhava desde 2011 com a Casa Conveniente, de Mónica Calle, onde participou em “A Missão - Recordações de uma Revolução”, de Heiner Müller, distinguido com o prémio de Melhor Espectáculo do Ano, em 2012, pela Sociedade Portuguesa de Autores.