Desinformação criou realidade paralela no Brasil, mas foi incapaz na crise
Mentiras nas redes sociais podem servir propósitos populistas. No entanto, os danos podem ser irreparáveis em tempos difíceis.
Um vídeo com a informação de que a água tônica cura a covid-19 circular pode parecer inofensivo. No entanto, a desinformação presente na peça, que foi partilhada no WhatsApp no Brasil, é composta pela mesma lógica que levou o instituto Ipsos a constatar que 7% dos brasileiros acreditam que o alho é efetivo contra a doença. Os falsos remédios podem não terem tantos efeitos negativos quanto o álcool no Irã, que levou a centenas de mortes após a mentira de que o mesmo curaria a covid-19 ter circulado. Mas a desinformação já traz enormes custos, inclusive financeiros, ao Brasil, e as curas estapafúrdias são apenas a ponta do iceberg.
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Um vídeo com a informação de que a água tônica cura a covid-19 circular pode parecer inofensivo. No entanto, a desinformação presente na peça, que foi partilhada no WhatsApp no Brasil, é composta pela mesma lógica que levou o instituto Ipsos a constatar que 7% dos brasileiros acreditam que o alho é efetivo contra a doença. Os falsos remédios podem não terem tantos efeitos negativos quanto o álcool no Irã, que levou a centenas de mortes após a mentira de que o mesmo curaria a covid-19 ter circulado. Mas a desinformação já traz enormes custos, inclusive financeiros, ao Brasil, e as curas estapafúrdias são apenas a ponta do iceberg.
O país é líder mundial na circulação de desinformação durante a pandemia, com cerca de 20% das peças globais observadas pelo consórcio internacional de fact-checking. As falsas curas são parte importante, mas as mentiras já minimizaram o risco da pandemia, acusaram órgãos públicos por falsificarem mortes, inventaram a fabricação do vírus como parte de uma conspiração global, disseram que máscaras estariam contaminadas, e, agora, espalham desinformação sobre possíveis vacinas.
Sem participação de importantes membros ligados ao atual governo, dificilmente a desinformação teria ido tão longe. Apoiante de Jair Bolsonaro, a deputada Carla Zambelli chegou a mencionar uma montagem que questionava o enterro de pessoas no país para atacar opositores, que estariam a aumentar o números de mortos para prejudicar o governo. Ao Presidente, coube a promoção e defesa de medicações sem eficácia comprovada, além de menosprezar os efeitos do que chamou de “gripezinha” para a maior pandemia do século.
Sondagem do Data Poder indicou que entre os apoiantes de Bolsonaro, 73% alegaram que fariam uso da cloroquina contra o coronavírus, enquanto 72% dos que avaliaram negativamente seu governo disseram que não usariam o remédio. Por sua vez, estudos demonstraram que o isolamento social foi menos respeitado em locais nos quais Bolsonaro teve votação mais expressiva em 2018.
A aposta na cloroquina levou o Brasil a encomendar as matérias primas para a medicação da Índia a um custo seis vezes maior do que o valor que era desembolsado antes da crise. O Exército foi mobilizado na produção de comprimidos e hoje há estoque para décadas com base no consumo usual. Nas farmácias, as vendas da cloroquina aumentaram em 328%. A ivermectina, usualmente utilizada no combate a vermes, foi propagada extensamente como cura no país, com especial adesão no interior, também com apoio de Bolsonaro.
Na pequena cidade de Itajaí, em Santa Catarina, R$ 4,4 milhões (cerca de 730 mil euros) foram gastos na aquisição da ivermectina. Diversas prefeituras, equivalentes às câmaras municipais, fizeram a compra da medicação, em especial por conta da pressão popular. O cenário complica-se ao entender a grave crise fiscal que atravessam os municípios, duramente atingidos pela crise financeira dos últimos anos.
Um efeito particular no país foi a introdução da desinformação em todos os níveis da sociedade. Um dos maiores propagadores de mentiras sobre uso da máscaras foi justamente um médico, como trouxe reportagem da Revista Piauí. Ao ser questionado sobre a veracidade de falácias ditas, a exemplo de que os equipamentos tornariam o sangue mais ácido, o que ajudaria a propagar o vírus, o médico respondeu à revista: “Tenho 49 anos de profissão, doutorado na Alemanha, não estou para discutir com ninguém. Cada um que aprenda.”
A escritora Eliane Brum descreveu como “autoverdade” a postura de enorme parte dos brasileiros com relação às informações nos últimos anos. A mesma foi adotada por parte de profissionais de Medicina que, por conta própria, passaram a desenvolver procedimentos paralelos no Brasil a despeito dos rumos tomados pela comunidade científica internacional.
O combate às fake news, em especial o desenvolvido pelas agências de checagem, que proliferaram-se nos últimos anos, remete ao mito grego de Sísifo. Na versão moderna do castigo de carregar um rocha ao topo de um monte para vê-la rolar tudo aquilo outra vez, encaixa-se investigar as mentiras do alho como cura, apenas para vir a observar as acusações de que o vírus seria uma criação de Bill Gates circularem. No ensaio O Mito de Sísifo, Albert Camus argumenta que os deuses que o condenaram “pensaram, com certa razão, que não há castigo mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”. No Brasil de 2020, Camus reforçaria sua desilusão.
O movimento anti-vacina é quase tão antigo quanto a existência das mesmas, e já ganha força no Brasil antes de uma aplicação massiva de um imunizante. O acordo do governo de São Paulo com chineses para a produção de possíveis vacinas levou a uma onda de sinofobia e diversas mentiras sobre a produção. Em uma das mais partilhadas, muitos acreditaram na ideia estapafúrdia de que havia um acerto desde de agosto de 2019, o que demonstraria a conspiração envolta na crise. Sem imunização coletiva, é quase impossível impedir a circulação da doença.
A desinformação segue muito aquém do seu potencial. Mentiras pouco elaboradas fizeram grandes estragos, com montagens ruins e histórias completamente desconexas da realidade, como a questão do alho. Em um futuro próximo, é possível que enfrentemos deep fakes capazes de simularem declarações de autoridades com quase perfeição. Inteligência artificial, algoritmos personalizados, captação de dados, são alguns dos avanços tecnológicos que poderão estar ao alcance dos futuros propagadores de verdadeiras fake news.
Até o momento, o WhatsApp mostrou-se excelente para ganhar eleições, mas ineficiente ao gerir crises. A aplicação de mensagens conta com mais de 130 milhões de usuários no país, e virou uma das grandes intermediadoras da vida social no Brasil. A partilha massiva de desinformações é investigada, mas ainda com poucos efeitos. O país aproxima-se da marca de 100 mil mortos, com uma média diária acima de mil óbitos por conta da covid-19. Por mais que tenha fugido nos últimos tempos, em algum momento, o país terá de enfrentar a realidade.