Aeroporto do Montijo: a mais recente vítima covid-19!
Se as medidas de mitigação da pandemia têm por base a audição de investigadores que se dedicam ao estudo dessa temática, porque motivo se insiste em fazer ouvidos moucos aos impactos ambientais com origem nos níveis de ruído que se sabe serem inevitáveis no Montijo?
Desde que se conheceu a proposta de localização de um novo aeroporto na península do Montijo, no coração da maior e mais importante zona húmida do país, este sempre foi um caso sintomático. A apresentação pública do Estudo de Impacte Ambiental (EIA) tornou este atentado à biodiversidade um caso confirmado que, apesar de originar anticorpos, acabará certamente na contabilidade das vítimas da actual pandemia.
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Desde que se conheceu a proposta de localização de um novo aeroporto na península do Montijo, no coração da maior e mais importante zona húmida do país, este sempre foi um caso sintomático. A apresentação pública do Estudo de Impacte Ambiental (EIA) tornou este atentado à biodiversidade um caso confirmado que, apesar de originar anticorpos, acabará certamente na contabilidade das vítimas da actual pandemia.
A actual pandemia criou em poucos meses uma rotura nos modelos assentes no constate crescimento económico, claramente insustentáveis num planeta com recursos finitos. Enquanto os países europeus, apanhados de surpresa pelo novo coronavírus, tentavam desenhar medidas de contenção e mitigação dos seus efeitos nefastos, em Portugal, o Governo foi rápido a antecipar várias acções para conter a propagação deste vírus. Com apenas 78 casos, decretou em 12 de Março a suspensão da actividade lectiva. A 16 de Março avançou com restrições à circulação nas fronteiras terrestres com Espanha e passados dois dias entrou em vigor o estado de emergência, confinando todo o país. Menos de uma semana após essa data, no dia 24 de Março e também pela acção do Governo, tiveram início as reuniões técnicas no Infarmed com o objectivo de informar os membros do Governo, o Presidente da República, representantes de vários partidos, entre outros, sobre a evolução da pandemia. Estas reuniões contaram com apresentações de especialistas em várias temáticas, desde saúde pública a epidemiologia e doenças infecciosas, com contribuições provenientes de membros de várias instituições (Universidades, Institutos de investigação, etc.). A transferência de conhecimento que teve e tem lugar nestas reuniões foi e é um factor determinante no sucesso da estratégia que os governantes de Portugal estabelecem no combate à actual pandemia. Sucesso esse amplamente reconhecido internacionalmente e justificado por membros do Governo como tendo por base uma acção rápida assente nos mais avançados conhecimento e evidências científicas.
Infelizmente, esta atenção aos especialistas e à informação de que dispõem não foi replicada pelos governantes e entidades responsáveis por avaliar os impactos ambientais do aeroporto do Montijo, especificamente no que diz respeito aos impactos na avifauna estuarina. E se o sucesso se atinge com recurso aos melhores dados da ciência e da técnica, ignorar os mesmos só poderá dar origem ao fracasso! Num projecto de tal relevância para o país, que irá influenciar a vida e a saúde pública de várias gerações, é difícil entender a falta de vontade do Governo e das autoridades nacionais nas suas diferentes competências em acolher o conhecimento científico mais avançado e tomar decisões com base nas evidências por ele demonstradas. E o fracasso está a bater à porta.
No passado dia 15 de Junho, várias associações de defesa do ambiente estiveram no Parlamento para uma vez mais declararem a invalidade do estudo de impacte ambiental do aeroporto do Montijo. No caso da avifauna estuarina, os impactos “negativos, significativos, moderada/elevada, permanentes e irreversíveis na avifauna”, tal como considerados no parecer da comissão de avaliação do EIA, não irão permitir o avanço deste projecto. Tanto o processo que decorre actualmente em tribunal, bem como os inquéritos de revisão iniciados pela convenção de Ramsar e pelo African-Eurasian Migratory Waterbird Agreement (AEWA) entregues à autoridade nacional para a conservação da natureza, demonstram a batalha que se avizinha onde a legislação nacional e comunitária, e os acordos internacionais, irão certamente prevalecer, como aliás já previsto no parecer dos técnicos do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas.
Apesar de vários especialistas terem demonstrado falhas técnicas no EIA e assinalado a ineficácia das medidas de mitigação propostas na declaração de impacto ambiental, o Governo continua a insistir no projecto. Mas se pelo menos as medidas de mitigação da pandemia têm por base a audição de investigadores que se dedicam ao estudo dessa temática, porque motivo se insiste em fazer ouvidos moucos aos impactos ambientais com origem nos níveis de ruído que se sabe serem inevitáveis no Montijo?
Curiosamente, e apesar da queda abrupta e jamais registada no transporte aéreo global, a ANA alinha com o Governo ao declarar a suposta urgência deste projecto. Uma vez que a ANA é detida pela Vinci, que por sua vez é também um dos dois maiores accionistas da Lusoponte, poderá existir aqui um risco de contágio de interesses. E a urgência em avançar com a localização Montijo talvez se possa diagnosticar pela concessão da exploração rodoviária da Lusoponte terminar em 2030. Se a proposta localização do novo aeroporto fosse outra e mediante a crise no sector da aviação, também este vítima da covid-19 (incluindo a TAP), esta urgência da Vinci e dos governantes teria provavelmente outro tratamento. Felizmente há quem consiga identificar as graves lacunas deste processo. Os presidentes das câmaras municipais da Moita e do Seixal têm resistido estoicamente ao elevado risco de contágio de que são alvo e têm vindo a desmascarar estudos e medidas de mitigação que, não assentando nos melhores dados da ciência e da técnica, não podem defender os valores e qualidades ambientais dos cidadãos e concelhos que representam.
Neste século onde nos podemos deslocar com uma facilidade inigualável, não deixa de ser curioso que é esse nível de vida a exponenciar a transmissão do novo coronavírus e a originar um confinamento global. Quando as ligações aéreas (humanas) estão severamente limitadas, são as aves migradoras que todos os anos ligam o estuário do Tejo ao Árctico e à África Ocidental a assegurar a conectividade planetária. Está nas nossas mãos evitar que essas ligações naturais e as espécies que as desempenham sejam substituídas por rotas artificiais que servem apenas uma. Na remota eventualidade do projecto do aeroporto do Montijo sobreviver aos efeitos do novo coronavírus, será certamente portador de sequelas muito graves que infelizmente não se manifestarão no próprio, mas nas multas pelo incumprimento de legislação comunitária que os contribuintes terão de suportar e pela perda de biodiversidade que todos, neste mundo globalizado, iremos sentir.
Portugal pode ainda sair mais saudável desta pandemia se abandonar o modelo económico de crescimento insustentável assente em combustíveis fosseis e lançar o país numa rota de sustentabilidade ambiental, seguindo a estratégia nacional de conservação da natureza e biodiversidade e implementando o Green Deal, proposto pela Comissão Europeia. Em suma, transformar-se num caso de sucesso ambiental e da conservação da biodiversidade, bastando para isso ouvir os especialistas!