Manter uma debulhadora com 70 anos: “É um acto de resistência porque precisamos muito de trigo”
João Vieira, produtor do Cadaval, mantém em funcionamento uma debulhadora com 70 anos, que usa para os trigos antigos que continua a semear.
O cenário que encontramos num domingo de final de Julho de 2020 na Póvoa, Cadaval, é semelhante ao que poderíamos ter encontrado há 70 anos: no meio de um campo aberto, meia dúzia de homens rodeiam uma debulhadora amarela e ruidosa. De um lado entra o trigo, com o auxílio de um tapete rolante, do outro saem fardos de palha. No meio, a máquina cospe metodicamente grãos dourados.
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O cenário que encontramos num domingo de final de Julho de 2020 na Póvoa, Cadaval, é semelhante ao que poderíamos ter encontrado há 70 anos: no meio de um campo aberto, meia dúzia de homens rodeiam uma debulhadora amarela e ruidosa. De um lado entra o trigo, com o auxílio de um tapete rolante, do outro saem fardos de palha. No meio, a máquina cospe metodicamente grãos dourados.
João Vieira, produtor de trigo na Póvoa, e grande defensor das variedades tradicionais, como o barbela, observa a máquina, orgulhoso: “Temos à nossa frente uma enfardadeira automática, uma máquina com 70 anos. Isto é muito importante para saber de onde viemos”. Decidiu preservar esta debulhadora, da marca Tramagal, que comprou a um produtor já retirado, porque acredita na importância de manter o conhecimento vivo – tal como as sementes. Por isso, todos os anos semeia e colhe o barbela e outros trigos em risco de desaparecimento, como o espelta graúda ou o miúda, “só para preservar a semente”.
Tem, há muito, uma convicção, que a pandemia de covid-19 só veio reforçar: “Face à situação actual, cujo desfecho em termos de abastecimento alimentar é imprevisível, vai mais do que nunca ser necessário no nosso país produzir cereais onde for possível. A tendência dos grandes países exportadores vai ser a de guardar o trigo para eles. E nós, em Portugal, em termos de cereais temos andado a dormir.” Sobrepõe a voz ao barulho da máquina. “O que eu faço aqui é um acto de resistência, de patriotismo, porque precisamos muito de trigo.”
Portugal pode não ter as condições ideais para produzir cereais, mas tem variedades – como o barbela – “perfeitamente adaptadas” a terrenos arenosos, onde não se dão “os trigos modernos, e muito menos os trigos rijos”, que são os usados para as massas alimentícias e as bases das pizzas, enquanto os moles se destinam ao fabrico de pão e bolos.
Aponta para a orla do campo onde nos encontramos e para as terras arenosas onde crescem eucaliptos. “Daqui até Rio Maior produzia-se barbela”, diz. “É uma variedade adaptada às zonas mais pobres do nosso território. A terra portuguesa é o que é, não são as terras da Ucrânia nem as planícies do Danúbio, mas como não vamos mudar a natureza do solo, vamos adaptar as sementes ao solo.” O barbela pode ser menos produtivo, sem dúvida, mas “não conseguirmos tirar seis toneladas por hectare não é motivo para não o semearmos e tirarmos três”, defende.
A debulhadora continua a fazer o seu trabalho e João Vieira convida-nos a subir um degrau para ver os grãos de trigo que saem. “Se reparar, o trigo sai quase limpo. Nas ceifeiras debulhadoras modernas, como a máquina apanha tudo, a erva não está ainda seca, mantém-se verde mesmo com o trigo seco, e não se consegue limpar o verde. Aqui esse problema não se põe.” Há ainda outra grande vantagem no método antigo, explica. “Como o trigo esperava na terra duas semanas antes de vir para a máquina, o bago ia absorvendo os sais minerais da palha.”
A Estremadura, onde nos encontramos, “já foi terra de abundância de trigo”, prossegue o agricultor. Cada aldeia tinha uma eira e todos os anos na altura da ceifa passava-se um ou dois meses a debulhar os cereais. “Antes das peras que há hoje, isto era uma zona só de duas culturas, o azeite e o trigo.”
Lembra-se ainda do entusiasmo com que os habitantes das aldeias recebiam a chegada da debulhadora, que em meados do século passado representava um progresso enorme. “Isto era alta tecnologia na época. As pessoas ficavam fascinadas a ver o trigo a entrar por aqui e a sair do outro lado dentro de um saco.” E o homem que operava a máquina “era um senhor”.
Recorda que “todos iam esperar a debulhadora e acompanhavam a chegada à eira, tal era o interesse a admiração”. Até ao aparecimento da máquina, a forma de separar o grão da espiga era manual, com os homens a malhar os fardos com um malho, que não era mais do que “dois paus atados um no outro”.
Hoje, de cada vez que monta a máquina para debulhar o seu trigo e o de outros produtores que, tendo quantidades pequenas, não têm outra forma de o fazer, João Vieira chama quem imagina que possa estar interessado para ver como se fazia antigamente. “Ainda agora estiveram aqui crianças, porque é muito importante passar este conhecimento.”
Apesar de ser uma máquina muito resistente, precisa de manutenção, e foi preciso descobrir alguns dos segredos do seu funcionamento. Mas nada disso desanimou João Vieira, e o filho que trabalha com ele. “Ninguém vai à escola aprender a pôr isto a funcionar. Temos que ir beber às pessoas mais velhas. Quando acabarmos o trabalho este ano, ela é recolhida para baixo de um telheiro, à espera do próximo ano. Se houver algum problema, ainda há quem possa arranjar. O problema poderão ser as peças, mas para isso tenho outra máquina reservada.”
Acredita que como esta há já muito poucas – se é que alguma – em funcionamento. Até há dez anos, era comum ainda ver-se uma debulhadora a trabalhar nesta região. “Isto ano após ano vão sendo abandonadas, os donos já estão com muita idade”. E conclui: “É preciso gostar-se muito do que se faz. Quando se gosta, aguenta-se.”