O futuro é tão difícil de adivinhar como o passado
O mundo que se conta a partir do que se diz.
“Parece-me que aqueles que trabalhamos com o imaginário social temos que ser menos obedientes e começar a pensar narrativas do futuro que não sejam narrativas do fim”, Gabriela Cabezón Cámara, escritora argentina
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“Parece-me que aqueles que trabalhamos com o imaginário social temos que ser menos obedientes e começar a pensar narrativas do futuro que não sejam narrativas do fim”, Gabriela Cabezón Cámara, escritora argentina
Atar outros laços
Podemos escrever sobre o fim ou sobre o princípio. Discorrer sobre os cataclismos que o futuro nos guarda ou lutar contra a fatalidade do destino e encontrar outras formas, palavras diferentes para “reescrever” o futuro. Em Las Aventuras de la China Iron, cuja tradução inglesa é finalista do International Booker Prize, a escritora argentina Gabriela Garzón Cámara mostra uma das formas com que se luta contra narrativas únicas do passado e do futuro e se mete os dois pés na coutada ficcional do branco heterossexual e burguês e se muda o ângulo da lente. Sem pudores. Que uma mulher pegue no El Gaucho Martin Fierro, o livro de poesia gauchesca que figura no mais alto patamar da literatura argentina, e resgate para o protagonismo a companheira de Martin Fierro, a quem José Hernandez nem nome dá, só a alcunha de “china” (dada normalmente aos índios na América do Sul, por causa dos olhos rasgados), é uma forma de desmontar o lego da “verdade histórica” que não é mais do que uma forma de construir e não a construção em si. “Importa que histórias contamos para contar outras histórias, importa que nós atam nós, que pensamentos pensam pensamentos, que descrições descrevem descrições, que laços enlaçam laços”, diz a escritora Donna J. Haraway, citada pela revista Gatopardo.
Todos os cisnes são negros
A experiência humana está repleta de convencimentos deitados por terra com a simples observação de uma excepção que desfaz num segundo anos de verdades adquiridas. Nassem Taleb falou disso num ensaio que ficou famoso: O Cisne Negro – Impacto do Altamente Improvável. Antes de os europeus chegarem pela primeira vez à Austrália, a verdade de que todos os cisnes eram brancos era indisputável, demonstrando, segundo Taleb, a “grave limitação da nossa aprendizagem a partir da observação ou da experiência e a fragilidade do nosso conhecimento”. O escritor e historiador mexicano Boris Berenzon Gorn recupera Taleb esta semana para falar sobre a tendência humana de juntar acontecimentos aleatórios para explicar o passado e interpretar o futuro. Raciocínio que levado ao extremo nos encerra no beco sem saída da verdade absoluta, numa “petulância desmedida” que “sobrestima o que se sabe” e “desvaloriza a presença fenoménica da incerteza”. Em vez de humildemente aceitar o “só sei que nada sei” e, a partir de aí, construir um pensamento que abrace o que a sorte e o acaso juntam como incerteza às milhentas interpretações da realidade, preferimos juntar provas que justifiquem a nossa conclusão apriorística. E nem tudo são teorias da conspiração: há quem ache que é ciência ou jornalismo.
O valor da ficção para prever o futuro
Morgan Robertson escreveu um livro chamado Futility sobre um barco inafundável chamado Titan, numa história um tudo ou nada semelhante aos acontecimentos que levaram ao afundamento do Titanic. Só que o livro do antigo camaroteiro e depois engastador de diamantes antes de se tornar escritor foi editado em 1898 e o naufrágio real aconteceu em 1912. Vikram Mansharamani, professor da Universidade de Harvard, recupera o exemplo de Robertson para falar da necessidade das empresas se voltarem para a ficção como forma de melhor conseguirem planear o futuro. Isaac Asimov dizia que “a ficção científica moderna era a única forma de literatura que de forma consistente considera a natureza das mudanças que enfrentamos” e Mansharamani escreve que, “ao forçar-nos a pensar em cenários radicais”, os livros e os filmes “expandem a nossa imaginação sobre aquilo que o futuro poderá ser”. O professor está habituado a olhar à volta à procura de dados que melhor permitam antecipar acontecimentos; em 2011, publicou um livro com base no curso que dava na Universidade de Yale, Boom Bustology: Spotting Financial Bubbles Before They Burst e que ensinava a olhar para o mundo com um olhar multidisciplinar: microeconomia, macroeconomia, psicologia, política e biologia.
O olhar que rápido envelhece
Pedro Sorela ensinava nas suas aulas de jornalismo na Universidade Complutense de Madrid, onde passou 30 anos, que a curiosidade é a qualidade mais necessária a um jornalista e que é por culpa do seu ocaso que o olhar envelhece. É o pior que pode acontecer, tanto no jornalismo, como na literatura, onde se busca o extraordinário que melhor nos ajude a contar o ordinário. O professor e escritor, nascido na Colômbia, filho de um espanhol e uma cubana, descendente de linhagem de diplomatas, morreu em 2018 e acaba de ser publicado em Espanha o livro póstumo Quién crea la noche, autobiografia poliédrica onde se cruzam todos os Pedros Sorelas, o professor, o escritor, o viajante, o jornalista, o pensador, o poeta e até o desenhador. Admirador de Antoine de Saint-Exupéry, que estudou profundamente, o escritor atira-se à mise en abyme, expressão criada por André Gide, mentor do autor de O Principezinho, e laça e enlaça 35 histórias que são uma só, a dele, feita de nós que atam nós e desatam uma perspectiva. Abrindo todo um futuro de curiosidade sobre um homem que um dia disse numa entrevista que começara a ler “por puro aborrecimento” e que a verdadeira viagem era a que se passava dentro de nós ao processar o que estava fora.