O futuro em debate: quem mexeu na nossa saúde?
Na pandemia de covid-19, o Serviço Nacional de Saúde funcionou graças à exímia actuação dos seus profissionais e a um movimento fundamental da sociedade científica e empresarial que desenvolveu testes, material médico (como ventiladores) e de protecção com rapidez e eficiência.
Em 1998, Spencer Johnson publicou um famoso livro motivacional intitulado Quem mexeu no meu queijo?, onde conta a história de quatro personagens: dois ratos (Sniff e Scurry) e dois anões (Hem e Haw). A parábola descreve a forma como estas personagens reagem quando, inesperadamente, ficam sem o seu queijo, que é metáfora para algo bom e estável que têm na vida. Tal como na realidade, cada personagem assume diferentes posturas perante esta mudança: a que não aceita a mudança, a que aprende a adaptar-se com o tempo, a que prevê a mudança e se prepara previamente e a que age rapidamente perante a mudança.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Em 1998, Spencer Johnson publicou um famoso livro motivacional intitulado Quem mexeu no meu queijo?, onde conta a história de quatro personagens: dois ratos (Sniff e Scurry) e dois anões (Hem e Haw). A parábola descreve a forma como estas personagens reagem quando, inesperadamente, ficam sem o seu queijo, que é metáfora para algo bom e estável que têm na vida. Tal como na realidade, cada personagem assume diferentes posturas perante esta mudança: a que não aceita a mudança, a que aprende a adaptar-se com o tempo, a que prevê a mudança e se prepara previamente e a que age rapidamente perante a mudança.
A pandemia de covid-19 fez mudar muita coisa e, no que concerne aos cuidados de saúde, está a ser um verdadeiro teste de stress. Quando, no início de Março, conhecemos a dimensão da pandemia que nos assolava, olhámos para um país com o número de camas de cuidados intensivos mais baixo da Europa, num Serviço Nacional de Saúde (SNS) já fragilizado, e vaticinámos o pior. Ainda que não se tenha verificado a situação catastrófica que se viveu em outros países, e ainda que a resposta dos cuidados de saúde tenha sido francamente positiva, não nos deixemos enganar. O Serviço Nacional de Saúde funcionou graças à exímia actuação dos seus profissionais e a um movimento fundamental da sociedade científica e empresarial que desenvolveu testes, material médico (como ventiladores) e de protecção com rapidez e eficiência.
É tempo de identificar os erros que esta crise evidenciou e colmatá-los de forma séria e empenhada. As fragilidades do SNS não são novas e já foram identificadas e amplamente discutidas. O que falta, então, aos nossos governantes para agir? Com a convicção da importância de serem tomadas medidas e conscientes da sua responsabilidade em participar no debate nacional, o grupo de jovens que integra a plataforma 100 Oportunidades, no campo da Saúde, identificou áreas prioritárias de acção que foram divulgadas num documento intitulado “50 medidas para um debate intergeracional de fundo na sociedade portuguesa pós-covid-19”. É fundamental que sejam definidas medidas específicas para incluir desde já no Plano de Recuperação Económica e Social (2020-2030). Algumas dessas propostas incluem, por exemplo, a simplificação e o aumento da autonomia do SNS. É fulcral eliminar níveis de decisão intermédia desnecessários, fazendo melhor uso dos recursos disponíveis e promovendo uma comunicação mais próxima e ágil entre as estruturas centrais do Ministério da Saúde e as entidades prestadores de cuidados de saúde.
No mesmo sentido, deve ser considerado o aprofundamento da cooperação entre sectores público, social e privado sempre centrada nos melhores interesses dos doentes. A maioria dos cidadãos desconhece que existe uma diferença entre Serviço Nacional de Saúde (sector público) e Sistema Nacional de Saúde (sector público e privado). O conceito do funcionamento do Sistema, seja através parcerias público-privadas ou de outros protocolos de cooperação, é muitas vezes considerado promíscuo. Mas a verdade é que os dados disponíveis mostram benefícios na qualidade dos cuidados prestados, e o que deve interessar ao Estado é precisamente a qualidade, acesso e satisfação dos utentes. É fundamental acabar com este antagonismo entre o sistema público e privado, entre o bom e o vilão (ou o vilão e o bom). Portugal é um país com recursos demasiado escassos para os poder desperdiçar quando está em causa a defesa da saúde da população.
Outro ponto relevante prende-se com a gestão dos recursos humanos. O SNS são as suas pessoas: os doentes mas também todos aqueles que os cuidam. Durante os primeiros seis meses do ano, os profissionais de saúde trabalharam um total de 8,112 milhões de horas extraordinárias, uma subida de 17% relativamente ao mesmo período do ano passado. Estão esgotados, desmotivados, não têm carreiras e são mal remunerados. Até quando não teremos uma estratégia clara nesta área?
Paralelamente, é preciso melhorar a gestão dos recursos materiais. É fundamental que existam dados centralizados e actualizados sobre os recursos humanos e materiais ao dispor, bem como uma caracterização da população que cada instituição serve. A ignorância relativamente aos nossos próprios recursos limitou e gerou insegurança na organização inicial da resposta à pandemia. É também estratégico rever o actual modelo de abastecimento de materiais essenciais ao funcionamento do Serviço Nacional de Saúde. Devemos lutar para que o nosso SNS seja eficiente.
Por fim, precisamos de investir na modernização. Portugal é uma referência internacional de digitalização no sector da Saúde e fez um caminho importante nesta área com várias plataformas e aplicações revolucionárias. Por outro lado, vários desses programas inovadores não funcionam nos computadores obsoletos que existem nos hospitais, que atrasam mais do que ajudam. E o que dizer do facto de muitos médicos serem forçados a realizar teleconsultas dos seus próprios telemóveis? Ou que há especialidades onde pela particularidade da sua actuação, instituíram videoconsultas, mas que não existem câmaras para as realizar? Não é demasiado tarde para corrigir a trajectória — o reforço dos recursos disponíveis para a transformação digital é urgente e deve ser uma prioridade.
É tempo de pensar no futuro e questionar: o que aprendemos? Como nos podemos reinventar, melhorar e preparar para os desafios futuros? A resposta, em resumo, é a seguinte: reorganizar, cooperar, gerir, responsabilizar, transformar e bem informar. Mas o caminho é longo e as áreas de abordagem não se esgotam aqui: investimento em literacia em saúde, aposta na prevenção primária, estratégias de prevenção da saúde mental e gestão da doença crónica são algumas das áreas importantes de abordar. Paralelamente, necessitamos de apostar na investigação científica de áreas básicas e clínicas, pois só um país com um bom suporte científico pode almejar prestar cuidados de saúde de excelência.
É preciso um plano bem estruturado para os cuidados de saúde regulares, e é necessário também um plano de resposta a uma situação de crise. Para que tal seja possível, e para que melhor possamos adaptar as medidas propostas acima, é essencial avaliar o desempenho do sector da saúde na resposta a este teste. E fazê-lo de forma séria, isenta e afastada de pressões e interesses políticos e ideológicos, tal como através de uma avaliação externa por uma entidade independente.
Vivemos um momento crítico e que está nas mãos de todos, e em particular de quem governa, fazer história. Mudanças que nos foram impostas, motivadas por uma situação que nunca pensámos viver, quebraram as primeiras resistências a uma mudança sempre difícil.
É fundamental aproveitar este momento de adversidade para capacitar o SNS português para os desafios vindouros.
É necessário que haja a coragem necessária para corrermos atrás do nosso “queijo”, do nosso SNS.