De que se alimenta um monstro?
Se houve racismo na morte de Bruno Candé? Parece-me óbvio que se possa tirar essa conclusão, se se vier a provar que o homicídio foi precedido por continuados insultos racistas e ameaças de morte, como tudo parece indicar que sim. Mas não julgo, neste momento, que responder a esta questão seja o principal. É mais importante perguntarmo-nos por que raio precisamos de fazer uma pergunta como esta, em pleno século XXI, no nosso país.
É um exercício vazio escrever homenagens a alguém de quem nunca tinha ouvido falar. Não o farei. Sei apenas que um homem de 39 anos, precisamente a idade que tenho agora, morreu em circunstâncias trágicas. A alguém que tenha um princípio de alma, a notícia, tal como surgiu nos jornais, não poderá ter deixado de causar o mais profundo dos horrores. Sei que a empatia não é um dom universal – a própria ficção treina-nos, desde meninos, a tolerar a dor do outro, e este é, afinal, o mesmo mecanismo que nos permite sobreviver à nossa terrível condição mortal. Mas é difícil não nos imaginar a nós próprios naquele café de Lisboa, com três tiros no peito, olhando incrédulos para os olhos de um louco, sentindo a vida escapar-se por três estúpidos buracos. Pode até ter sido uma morte imediata, mas o último minuto de Bruno Candé deve ter tido toda a violência da eternidade. E como se a notícia não fosse suficientemente horrenda, algo me alarmou ainda mais, se possível fosse. É triste que me veja forçado a reconhecê-lo, e isto diz bem dos tempos em que vivemos. Mal vi a fotografia da vítima, intuí a polémica que inevitavelmente daqui viria, e que me impressiona tanto. Saber se houve racismo ou não. Se o assassinato foi feito por motivos raciais ou por qualquer outra razão. Se vivemos numa sociedade racista, de racismo assim-assim ou de nenhum racismo. Não me enganei.
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É um exercício vazio escrever homenagens a alguém de quem nunca tinha ouvido falar. Não o farei. Sei apenas que um homem de 39 anos, precisamente a idade que tenho agora, morreu em circunstâncias trágicas. A alguém que tenha um princípio de alma, a notícia, tal como surgiu nos jornais, não poderá ter deixado de causar o mais profundo dos horrores. Sei que a empatia não é um dom universal – a própria ficção treina-nos, desde meninos, a tolerar a dor do outro, e este é, afinal, o mesmo mecanismo que nos permite sobreviver à nossa terrível condição mortal. Mas é difícil não nos imaginar a nós próprios naquele café de Lisboa, com três tiros no peito, olhando incrédulos para os olhos de um louco, sentindo a vida escapar-se por três estúpidos buracos. Pode até ter sido uma morte imediata, mas o último minuto de Bruno Candé deve ter tido toda a violência da eternidade. E como se a notícia não fosse suficientemente horrenda, algo me alarmou ainda mais, se possível fosse. É triste que me veja forçado a reconhecê-lo, e isto diz bem dos tempos em que vivemos. Mal vi a fotografia da vítima, intuí a polémica que inevitavelmente daqui viria, e que me impressiona tanto. Saber se houve racismo ou não. Se o assassinato foi feito por motivos raciais ou por qualquer outra razão. Se vivemos numa sociedade racista, de racismo assim-assim ou de nenhum racismo. Não me enganei.
Dei por mim, nos últimos tempos, a pensar num episódio que se passou comigo, numa daquelas situações de trânsito em que a humanidade se revela, para o bem e para o mal. Era ainda muito jovem e tinha poucos meses de carta. Alguém me impediu de fazer uma mudança de faixa, acelerando de propósito para não me deixar entrar na sua via. Barafustei com um gesto de que hoje me arrependo. No semáforo seguinte, o homem saiu disparado do seu carro na minha direcção. Fechei imediatamente a janela e tranquei a porta. Ele guinchava e raivava, batia com toda a força no vidro quase o partindo com a sua aliança, gritando os impropérios mais nojentos. Estava nitidamente descompensado. Protegido, pude observá-lo em silêncio, sem esboçar nenhuma reacção: restava-me apenas esperar que o semáforo ficasse verde, e escapulir-me dali o mais depressa que pudesse. Senti-me como um cientista que, na segurança do laboratório, examina impunemente um vírus ao microscópio. Compreendi, então, de forma definitiva, que o ódio procura de forma ávida as suas próprias causas, alimenta-se a si próprio, e quando explode tem um único escape: a violência. Se aquele homem tivesse uma arma, talvez me tivesse dado um tiro. Naquele dia, eu seria o seu gatilho.
Se houve racismo na morte de Bruno Candé? Parece-me óbvio que se possa tirar essa conclusão, se se vier a provar que o homicídio foi precedido por continuados insultos racistas e ameaças de morte, como tudo parece indicar que sim. Mas não julgo, neste momento, que responder a esta questão seja o principal. É mais importante perguntarmo-nos por que raio precisamos de fazer uma pergunta como esta, em pleno século XXI, no nosso país. Uma das razões principais é precisamente porque há quem cada vez mais esteja disposto, nestes momentos, a dizer que Portugal não é um país racista, menorizando a linguagem do ódio, reduzindo-o a um mero e inconsequente jogo de palavras.
Coloquemo-nos uma simples questão: aqueles – e são muitos – que puseram na agenda mediática, inadvertidamente ou não, a tese de que não há racismo em Portugal, ou de que este não é um país racista (nem vejo bem porque há-de ser produtiva uma tal distinção), são responsáveis pela morte deste homem? Não. Mas estes mesmos cidadãos, que votam e até formam partidos políticos com representação parlamentar, esses mesmos cidadãos que mandam calar negros e sugerem que vão para a sua terra, que propõem leis específicas para os ciganos, que fazem e não fazem, ao mesmo tempo, saudações nazis, contribuem para o discurso do ódio? A resposta, para mim, é evidente: sim, é claro que sim. E esse ódio pode vir a manifestar-se em formas de violência extrema como aquela que vimos? Sim, é óbvio que sim. Estes cidadãos tentam combater o racismo, a xenofobia, e todas as mil variações do ódio nos seus discursos, nas suas acções, nos seus silêncios? Não, não tentam. E porque não o fazem? Não será porque se alimentam desta linguagem odienta, porque precisamente a sua visibilidade cresce com ela? Pois eu receio que um dia estes meus compatriotas fiquem reféns do monstro que alimentaram, e se vejam um dia, tal como eu, protegidos apenas por um vidro.
Podem-me dizer que homens como o deputado que agora anda nas bocas do nosso pequeníssimo mundo (talvez a sua única preocupação sincera) não criou a besta, apenas lhe dá voz e visibilidade. Mas isso não o iliba; pelo contrário, responsabiliza-o. É até um fraco consolo que esta indistinta vozearia esteja agora representada no Parlamento, pois neste momento posso dirigir-me ao seu único deputado eleito, e não a uma abstracção idealizada. Falo, pois, ao seu coração, reconhecendo nele toda a humanidade que igualmente se revelava naquele homem que me ia matando, ou que talvez eu próprio tivesse matado, caso tivesse, naquele dia, aberto a porta do carro, e cedido ao voluptuoso chamamento da ira. Ouça-me dizer isto, da forma mais simples que sei: o ódio mata. Não desvalorize a força do sentimento, seja qual for o nome que dê ao monstro. Chame-lhe o que quiser: ele continuará à espera de uma pequena centelha para fazer em cinzas o mundo que queremos legar aos nossos filhos, que infelizmente já é o mundo em que os três filhos de Bruno Candé serão forçados a viver.