Sobrevivente do Holocausto exige indemnizações aos caminhos de ferro alemães
Salo Muller, cujos pais foram levados de comboio para Auschwitz, já conseguiu que a Ferrovias Holandesas pagasse 50 milhões de euros pelo papel que desempenhou no Holocausto.
Escapou ao Holocausto escondendo-se de casa em casa até ao fim da II Guerra Mundial, mas os pais foram presos pelos nazis e levados num comboio dos Ferrovias Holandesas (Nederlandse Spoorwegen, em holandês) de Amesterdão até à fronteira alemã, com o destino final a ser Auschwitz. Nunca mais os viu. Salo Muller, hoje com 84 anos, conseguiu que a empresa holandesa pagasse indemnizações pelo papel que desempenhou no Holocausto e, agora, interpôs um processo para conseguir o mesmo da ferroviária Reichsbahn (hoje Deutsche Bahn).
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Escapou ao Holocausto escondendo-se de casa em casa até ao fim da II Guerra Mundial, mas os pais foram presos pelos nazis e levados num comboio dos Ferrovias Holandesas (Nederlandse Spoorwegen, em holandês) de Amesterdão até à fronteira alemã, com o destino final a ser Auschwitz. Nunca mais os viu. Salo Muller, hoje com 84 anos, conseguiu que a empresa holandesa pagasse indemnizações pelo papel que desempenhou no Holocausto e, agora, interpôs um processo para conseguir o mesmo da ferroviária Reichsbahn (hoje Deutsche Bahn).
“Foram amontoados em vagões de gado, 60 a 70 pessoas cada um. Havia um balde para as necessidades fisiológicas, e muitos morreram sufocados”, disse à Muller à Deutsche Welle. “Os judeus tiveram que comprar uma passagem de comboio”, continuou. Antes de serem obrigados a embarcar, os famílias de judeus eram separadas e espoliadas de todos os seus bens, mesmo daqueles que cabiam numa pequena mala.
Entre 1941 e 1944, a Ferrovias Holandesas transportou 107 mil judeus holandeses (70% da população judaica na Holanda) até ao campo transitório de Westerbork, na fronteira com a Alemanha. A partir daí, foram reencaminhados para comboios de gado da Reichsbahn e transportados até ao campo de extermínio de Auschwitz, na Polónia.
A empresa obrigava as vítimas a pagarem bilhetes – os adultos pagavam quatro cêntimos por quilómetro, enquanto as crianças pagavam dois e os menores de quatro anos viajavam gratuitamente – e lucrou 16 milhões de euros ao câmbio actual, soma bastante significativa na altura.
Muller, um famoso fisioterapeuta ao serviço do Ajax, conseguiu no ano passado uma importante vitória contra a empresa ferroviária holandesa. Quando confrontada com o papel que desempenhou no Holocausto, a Ferrovias Holandesas disse lamentar, mas rejeitou a ideia de pagar indemnizações aos familiares das vítimas. Muller não aceitou a resposta e, durante anos, organizou uma intensa campanha de denúncia, até que, saturado, ameaçou avançar com um processo judicial, o que iria prejudicar ainda mais a imagem da empresa.
A Ferrovias Holandesas cedeu e aceitou pagar a algumas centenas de sobreviventes 50 milhões de euros pelos quase sete mil judeus holandeses que transportou e que morreram em Auschwitz. Cada um dos 500 judeus, ciganos e sinti ainda vivos teve direito a 15 mil euros e os familiares das vítimas a entre cinco mil a 7500 euros.
E, por isso, chegou agora a vez da ferroviária alemã pagar pelo papel que desempenhou no Holocausto. “Os judeus holandeses transportados pela Reichsbahn foram simplesmente esquecidos”, disse o advogado de Muller, Axel Hagedorn. “O Estado é accionista a 100% dos caminhos-de-ferro. A responsabilidade moral da Alemanha permanece”.
Contudo, e apesar de os factos serem inegáveis, o assunto é legalmente complexo, diz a Deutsche Welle. É que a Deutsche Bahn, fundada em 1994, depois da reunificação da Alemanha, não é a sucessora legal da empresa ferroviária que transportou os judeus, deixando no ar quem deve ser processado. Mas o advogado não tem dúvidas de que a responsabilidade cabe ao Governo federal, esperando que a pressão sobre a Alemanha continue a aumentar depois de a empresa holandesa ter aceitado pagar.
Negócio da morte
A Alemanha nazi caracterizava-se por um profundo ódio aos judeus e a todos aqueles que considerasse inaptos para pertencer à sua idealizada sociedade racialmente pura, como ciganos, socialistas e comunistas, homossexuais e doentes mentais. Privou-os de direitos, deportou-os e assassinou-os em território alemão e ocupado, ora com fuzilamentos em massa, ora à fome ou em campos de extermínio. Mais de oito milhões morreram em campos nazis.
O Holocausto foi ideologicamente motivado, desumanizando o Outro, mas também foi encarado como cínico negócio para o regime nazi, grandes empresas e bancos que o apoiavam – as câmaras de gás foram, por exemplo, uma importante receita para a indústria química. Os judeus foram privados dos seus direitos mais básicos e bens (inclusive dentes de ouro), que financiaram a indústria e o esforço de guerra, e mais tarde deportados para campos de concentração, onde os obrigaram a trabalhar, até que o desfecho da guerra começou a mudar a favor dos Aliados e os nazis optaram, em 1942, pela Solução Final.
O Holocausto foi logisticamente organizado ao pormenor, como demonstrou o julgamento do nazi Adolf Eichmann, responsável pela logística, em Jerusalém, em 1961. E a rede de caminhos-de-ferro desempenhou um papel fulcral, por causa da sua eficácia e escala.
Em Janeiro de 1943, relembra o Guardian, o chefe das SS, Heinrich Himmler, escreveu a Albert Ganzenmüller, secretário de Estado dos Transportes e vice-director da ReichsBahn, a pedir mais comboios de gado para transportar judeus. “Se tenho alguma esperança de lidar rapidamente com estes problemas, preciso de mais comboios de transporte. Ajude-me a conseguir mais”, escreveu Himmler na carta.
O vice-director foi o único nazi da empresa a ir a tribunal, mas no primeiro dia do julgamento, em 1973, alegou estar a sofrer um ataque cardíaco e foi dispensado por razões médicas. Nunca foi julgado e viveu até 1996. É um dos rostos menos conhecidos da impunidade de quem cometeu o Holocausto.
“Culpo a empresa ferroviária por conscientemente transportar judeus para os campos e por os matar de uma maneira horrível”, disse Muller ao programa holandês Nieuwsuur, da televisão pública NPO2, citado pelo Guardian. “Não posso desistir, porque isso me magoa todos os dias. Tenho que pensar todos os dias sobe isso. E quero que essa dor acabe finalmente”.