Descoberto um dos passos da receita usada pelo embrião para fazer um pâncreas

Novas pistas sobre a formação do órgão que controla os níveis de glicose no sangue, através da produção de insulina, podem ser úteis para o tratamento da diabetes. Estudo de investigadores portugueses foi publicado na Cell Reports.

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Cientistas identificaram proteína que é essencial para a formação do pâncreas em embriões de peixe-zebra e encontraram o “código” humano equivalente i3S

Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), na Universidade do Porto, identificou uma proteína que está envolvida na formação do pâncreas no embrião e que pode vir a ser útil para melhorar terapias que são usadas no tratamento de diabetes. Os cientistas seguiram o rasto desta proteína que é essencial para a formação do pâncreas em embriões de peixe-zebra e encontraram ainda o “código” humano equivalente. O trabalho pode ser útil para facilitar a complexa tarefa de diferenciação de células pancreáticas usada para tratar a diabetes.

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Uma equipa de investigadores do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), na Universidade do Porto, identificou uma proteína que está envolvida na formação do pâncreas no embrião e que pode vir a ser útil para melhorar terapias que são usadas no tratamento de diabetes. Os cientistas seguiram o rasto desta proteína que é essencial para a formação do pâncreas em embriões de peixe-zebra e encontraram ainda o “código” humano equivalente. O trabalho pode ser útil para facilitar a complexa tarefa de diferenciação de células pancreáticas usada para tratar a diabetes.

Imagine que para fazer um pâncreas é necessário uma receita, com vários ingredientes que têm de estar no devido lugar e ser usados na devida altura. Agora imagine também que sabemos que um dos muitos ingredientes usados para fazer este delicado órgão está guardado num determinado armário (que tem lá dentro muita coisa). No estudo dos cientistas do i3S, este armário corresponde a uma estrutura chamada notocorda, que – explicado de uma forma muito simples – é uma espécie de bastão flexível na região dorsal dos embriões, que mais tarde fica reduzido apenas aos discos intervertebrais.

Não foi por acaso ou golpe de sorte que a equipa escolheu este armário para procurar um dos ingredientes que fazem um pâncreas. Já sabia que este era um dos sítios certos para vasculhar. “Nos anos 90 foram feitas experiências muito interessantes em que, cirurgicamente, se conseguiu extrair a notocorda dos embriões de galinha e um dos resultados que se observou foi a ausência de pâncreas. Portanto, sabia-se que a notocorda tinha uma influência positiva na formação do pâncreas. Descobriram-se também algumas moléculas suspeitas que poderiam estar envolvidas neste processo de sinalização entre estruturas, mas esta proteína nunca foi identificada”, conta ao PÚBLICO o investigador José Bessa, coordenador do estudo publicado este mês na revista Cell Reports.

Agora, os investigadores não só comprovaram a ligação entre a notocorda e o primórdio pancreático do embrião, como identificaram uma importante proteína guardada no tal armário. “Descobrimos que há uma proteína que parte da notocorda e que controla o tamanho de pâncreas”, diz José Bessa. João Amorim, primeiro autor do artigo, avança com mais alguns detalhes deste mecanismo, num comunicado do I3S sobre o estudo, referindo que “a proteína que é expressa na notocorda e que serve de sinalização à formação do pâncreas no embrião de peixe-zebra” é denominada Nog2.

Como acontece em muitos estudos deste tipo, os investigadores experimentaram eliminar este ingrediente da receita para demonstrar a sua importância. “Quando se elimina a Nog2 dos embriões, o pâncreas ainda se forma, mas fica muito reduzido”, explica José Bessa, adiantando que se observou uma redução do número de células progenitoras do pâncreas e também das células produtoras de insulina.

Mas a equipa foi ainda mais longe e procurou também as instruções de fabrico deste ingrediente no ADN, ou seja, a sequência no ADN que faz com que esta proteína seja produzida. Encontraram vários códigos candidatos que foram “silenciando” um a um, até identificarem a sequência que correspondia à Nog2.

Daí, seguiu-se o salto para os humanos. “Do ponto de vista evolutivo, sabe-se que o filo de vertebrados contém pelo menos três genes Nog distintos: Nog1, Nog2 e Nog3. Nos mamíferos, apenas Nog1 foi mantido, provavelmente mantendo todas as funções e padrões de expressão dos três genes ancestrais do filo de vertebrados”, lê-se no artigo. “A proteína que existe no peixe não é exactamente a mesma que existe em humanos e que também é expressa na notocorda. Mas a função é a mesma”, esclarece José Bessa, adiantando que encontraram “as regiões no nosso ADN que basicamente definem o padrão de expressão deste gene, que depois produz esta proteína de sinalização”. É esta sequência no ADN que diz que aquela proteína tem de estar ali e a fazer o quê. As sequências são distintas nos peixes e humanos, mas com uma função muito semelhante, o que indica que em termos evolutivos “o mecanismo foi conservado”, conclui o investigador.

Quando tudo funciona bem, o pâncreas, entre outras funções importantes deste órgão vital, controla os níveis de glicose no sangue através da produção (pelas células beta) de insulina. O transplante de células beta é precisamente uma das terapias em desenvolvimento para tratar doentes com diabetes e que sofrem uma redução ou perda desta função pancreática.

No entanto, este tipo de tratamento envolve um exigente processo de cultivo e diferenciação in vitro de células produtoras de insulina, ou seja, o fabrico destas células em laboratório.

“Já se sabia que esta proteína melhorava este processo de diferenciação, mas agora compreendemos porquê, qual é o fundamento biológico. Com este trabalho fica mais evidente que, para os meios de cultura e para diferenciação das células, é preciso que esta proteína esteja presente e ajuda a melhorar os protocolos e eficiência da diferenciação”, aponta José Bessa. O cientista arrisca mesmo especular que esta proteína também poderá ter um papel decisivo nos casos de desenvolvimento precoce de diabetes.

Regressando à nossa receita para fazer um pâncreas do tamanho certo, temos então um código que nos dá acesso a um ingrediente fundamental e que garante que essa proteína aparece no lugar certo e no momento certo. O código será diferente entre humanos e peixes, mas os dois servem para a mesma função, para regular o mesmo mecanismo. É claro que é preciso muito mais do que um ingrediente para fazer um órgão complexo como o pâncreas. Há outras proteínas, ou ingredientes na receita, com diferentes papéis. O desafio agora será varrer o ADN à procura de outras sequências (outros códigos de instruções) que cumpram também esta importante função de colocar proteínas no sítio certo e no momento certo e que fazem com que o pâncreas funcione bem.