Galego e português: a fala comum
Nas viagens que tenho feito pela Galiza, pude confirmar como o reintegracionismo é um movimento sério e sustentado, não apenas através de documentos e do nosso incontornável património cultural – de que são exemplo as cantigas medievais em galaico-português –, mas nas ruas. Hoje assinala-se o Dia da Galiza.
Visitar a Galiza é um reencontro com a matriz da língua que falo. “Aqui ganha-se mais língua”, disse-me um dia a escritora galega Iolanda Aldrei. E logo entendi que se referia à ancestralidade da fala que ambos partilhamos, da cultura que um dia uma fronteira separou e da verdade que ninguém pode negar: é impossível compreender Portugal sem a Galiza, tal como é impossível compreender a Galiza sem Portugal.
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Visitar a Galiza é um reencontro com a matriz da língua que falo. “Aqui ganha-se mais língua”, disse-me um dia a escritora galega Iolanda Aldrei. E logo entendi que se referia à ancestralidade da fala que ambos partilhamos, da cultura que um dia uma fronteira separou e da verdade que ninguém pode negar: é impossível compreender Portugal sem a Galiza, tal como é impossível compreender a Galiza sem Portugal.
O movimento reintegracionista traz alguma luz aos laços de irmandade entre a Galiza e Portugal. O movimento defende que o galego se escreva segundo a grafia histórica, ou seja, como o português, como muito bem o explicou o jornalista Ruben Martins na reportagem do PÚBLICO “O galego vai salvar-se no português?”. Nas viagens que tenho feito pela Galiza, pude confirmar como o reintegracionismo é um movimento sério e sustentado, não apenas através de documentos e do nosso incontornável património cultural – de que são exemplo as cantigas medievais em galaico-português –, mas nas ruas. É uma realidade viva. Basta mergulhar na terra antiga galega para encontrar topónimos que contam a história de como o galego, ou o português, evoluiu ali, e de escutar as gentes a falar.
Se nas cidades é notória a herança da segregação e repressão linguística e cultural promovida até hoje por Espanha, com a imposição do castelhano — havendo já quem não fale galego —, nas aldeias ainda nos podemos maravilhar com as fonéticas das gentes mais antigas, tão próximas do jeito de falar de quem vive no Norte de Portugal e nas Beiras. E apesar do medo que ainda ficou dos tempos do franquismo, em que falar a língua da terra era motivo para perseguição, ainda resistem. Na Galiza ainda se fala a mesma língua que eu falo, apesar de todas as tentativas de eliminar a cultura indígena daquele território. E há muita gente a reivindicá-lo. Dentro e fora da Galiza.
Exemplo disso são os escritores galegos reintegracionistas, cujos livros são escritos tal e qual como nós escrevemos deste lado da fronteira. Procuram eliminar as marcas que a colonização e a segregação castelhana lhes deixaram na língua, por séculos e séculos. Marcas que não são meras escolhas ortográficas inocentes. Representam violência, perseguições, assassinatos e a vontade de eliminar uma cultura e um povo. Não escrevem carballo, mas carvalho. Não escrevem Galícia, mas Galiza. E apesar do trabalho corajoso que têm vindo a levar a cabo, de autêntica restituição da memória da língua, ainda enfrentam muita resistência por parte das instituições, das governamentais às académicas, que continuam a excluí-los por não escreverem no galego dito oficial. Além de haver um grupo maioritário de editoras que os rejeita, ainda estão impedidos de concorrer a diversos prémios literários. Contudo, com a progressiva abertura dos certames literários lusófonos aos escritores galegos, têm conseguido encontrar além-fronteiras o espaço que lhes é negado no seu país, como o escritor Mário J. Herrero Valeiro, que em 2015 venceu o Prémio Literário Glória de Sant’Anna, promovido em Portugal e destinado ao melhor livro de poesia dos países e regiões de língua portuguesa.
Estas lógicas opressivas e intimidatórias, que pretendem isolar os dissidentes, não servem a Galiza, mas o Estado espanhol. Sei como os Estados precisam de mitologias próprias que os justifiquem e legitimem, promovendo discursos que vão ao encontro da supremacia dos impérios. Também sei que os Estados são os primeiros a censurar o que consideram perigoso à ilusão de unidade que querem incutir. E todos os Estados o fazem, de forma mais ou menos evidente. Veja-se o que França fez com o bretão ou com o provençal, por exemplo. Na Galiza, ainda é notória a ferida. Mas os povos nunca precisarão dos Estados para viver. E a Galiza prova-o, pela forma como tem resistido à tirania. Já dizia Afonso Castelão, no seu Alba de Glória: “Afortunadamente, a Galiza conta, para a sua eternidade, com algo mais do que uma história mutilada, conta com uma tradição de valor imponderável, é isso que importa para ganhar o futuro”.
No mês em que se assinala o Dia da Galiza, recordo as palavras de um vulto da sociedade galega fundamental na reivindicação da língua livre. “A fala da Galiza, o português de Portugal, o português de Brasil, e os português dos distintos territórios lusófonos formam um único diassistema linguístico, conhecido entre nós popularmente como galego e internacionalmente como português”. Estas palavras encontrei-as enquanto caminhava, um dia, pelas ruas de Compostela. Estão escritas no memorial a um homem cuja estátua está de mão estendida na direcção de quem passa por ali. Escreveu-as Ricardo Carvalho Calero, um dos pais do reintegracionismo, a quem este ano a Galiza dedicou o Dia das Letras Galegas, celebrado a 17 de Maio. E estas palavras estão ali, na rua, para quem as quiser ler. Tenho esperança de que muitos se cruzem com elas enquanto caminham por Compostela, que as memorizem e repitam pelo mundo, como quem lança sementes à terra. Os Estados podem ser autoritários, procurando tornar a vida estéril, mas as comunidades, pela sua generosidade natural, provam que a fraternidade é o futuro.