Erdogan quer ser o sultão dos turcos
A reconversão de Santa Sofia numa mesquita não é em vão nem é inócua. Erdogan tem vindo a minar aos poucos a imagem de Kemal Atatürk, o “pai dos turcos”.
É cada vez mais evidente que Recep Tayyip Erdogan se vê a si próprio como o reconquistador que irá devolver à Turquia o esplendor otomano. A democracia islâmica e moderada (exceptuando quando o tema são os curdos), que pretendia aderir à União Europeia, é um pormenor do início de carreira de Erdogan.
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É cada vez mais evidente que Recep Tayyip Erdogan se vê a si próprio como o reconquistador que irá devolver à Turquia o esplendor otomano. A democracia islâmica e moderada (exceptuando quando o tema são os curdos), que pretendia aderir à União Europeia, é um pormenor do início de carreira de Erdogan.
Na proverbial ambiguidade entre Ocidente e Oriente — que Orhan Pamuk tão intensamente explica —, Erdogan começou pela aproximação à Europa, que sempre olhou a adesão turca de soslaio e que a arremessou para as calendas gregas, e acabou numa deriva autoritária e nacionalista, de base religiosa, e com pretensões geopolíticas imperiais na Líbia ou na Síria, em suma, nos antigos territórios do Império Otomano. A tentativa de o derrubar, há quatro anos, foi o pretexto que faltava para prender opositores, críticos, jornalistas, tudo que lhe inspirasse discordância e reforçar o presidencialismo. E assim nasceu o “erdoganismo”.
A reconversão de Santa Sofia numa mesquita (86 anos depois) não é em vão nem é inócua. Erdogan tem vindo a minar aos poucos a imagem de Kemal Atartük, o “pai dos turcos”, o fundador da república e primeiro Presidente do país, venerado praticamente como um deus por um povo que adora heróis, cuja imagem é omnipresente. Atatürk criou um estado secular, inspirou-se no código civil suíço, no código comercial alemão e no código penal italiano, adoptou o smoking quando pendurou a farda militar e fez crer aos turcos, após o desmembramento do Império Otomano, que eles eram europeus.
O que isto também quer dizer é que a laicização e modernidade que o kemalismo quis introduzir num país rural e atrasado sofre um gigantesco retrocesso com a islamização de um edifício que simbolizava o cruzamento de culturas e religiões. Erdogan estará preocupado com a sua popularidade, e esta medida é popular no país, e com os maus resultados que obteve em Istambul na última eleição.
Mas o que deve preocupar mesmo Erdogan é a sua posteridade; suplantar a memória de Atatürk como “pai dos turcos”, fazer da Santa Sofia uma questão de soberania, e impor-se como um sultão em traje ocidental e uma política expansionista que nos remete para um imperialismo “neo-otomano”. As primeiras orações desta sexta-feira na Santa Sofia são o fim de algo e a consagração de Erdogan como o “reconquistador”, em nome da nostalgia imperial e muçulmana. O “erdoganismo” quer eternizar-se com a bênção divina.