Os Saldanha Pisco vão velejar pelo mundo com os quatro filhos e sem data de regresso
Velejar pelo mundo com os filhos: foi a ideia que juntou João e Inês Saldanha Pisco enquanto casal e vai finalmente concretizar-se em Agosto. Consigo levam quatro filhos, dos dois aos dez anos. Para trás deixam os empregos e a vida das 9h às 17h. Quando é que vão regressar e qual o percurso ao certo? Nem eles sabem.
Entre os barcos e toda a parafernália marítima no Centro Náutico de Algés, Alice, Manuel, Francisco e Teresa correm e brincam uns com os outros. São crianças, entre os dois e os dez anos, mas dentro de pouco tempo vão ser também tripulação de um veleiro que vai dar a volta ao mundo sem data de regresso.
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Entre os barcos e toda a parafernália marítima no Centro Náutico de Algés, Alice, Manuel, Francisco e Teresa correm e brincam uns com os outros. São crianças, entre os dois e os dez anos, mas dentro de pouco tempo vão ser também tripulação de um veleiro que vai dar a volta ao mundo sem data de regresso.
Contudo, o barco ainda não está no mar. Na verdade, também não está bem em terra. Suportado por uma estrutura com cerca de três metros, eleva-se no ar enquanto se aprontam as pinturas. “Ele enganou-me!”, exclama Inês Saldanha Pisco, a mãe da família. “O meu marido disse-me que íamos dar uma volta ao mundo e agora estamos é a pintar”, revela, entre risos. O processo de pintura é um dos últimos preparativos para a aventura.
A ideia é simples: João e Inês Saldanha Pisco estão a preparar-se para, juntamente com os quatro filhos, zarpar de Lisboa em Agosto e dar a volta ao mundo num veleiro. Uma vez que nem eles sabem quanto tempo querem levar na aventura — podem ser dois, podem ser cinco anos —, despediram-se dos empregos. Ele era fotógrafo e dava aulas de audiovisuais, ela tinha uma empresa de organização de eventos. “Nada nos prende cá. A única coisa que nos vai fazer voltar é a decisão da própria família”, sublinha Inês. A viagem vai ser relatada na conta de Instagram da autodenominada Wind Family.
Há seis anos que juntavam dinheiro para comprar o barco e concretizar o objectivo que, na verdade, foi o que os juntou enquanto casal. “Quando nos conhecemos ele disse-me ‘O meu sonho é ter um barco à vela e viajar pelo mundo com imensos filhos’. Era tudo o que eu queria!”, relembra Inês, com um sorriso. Porém, durante anos o plano foi posto de lado e era revisitado de vez em quando, “quase como quem sonha com o Euromilhões”, afirma João. Quando finalmente chegou o dia de comprar o veleiro que o professor de 44 anos encontrou no Panamá, Inês diz ter sentido que “estava a comprar um sonho”.
Planos “ao sabor da família"
Mas o que é que leva uma família a deixar tudo? “Tem muito a ver com os nossos filhos. Queremos ter uma relação com eles que nunca poderíamos ter com uma vida das 9h às 17h. Partir de viagem é uma prenda que lhes quero dar”, revela João Saldanha Pisco. O casal lisboeta admite que a decisão não é fácil, mas sublinha a importância de arriscar. “As pessoas com os medos e com desculpas fazem muito pouca coisa na vida”, começa por dizer Inês, que revela também ter “mil e um medos”.
O confinamento a um barco durante longos períodos de tempo não é um desses medos. A família não o compara com o confinamento obrigatório durante a pandemia de covid-19. “Nós até podemos passar várias semanas todos juntos, mas depois atracamos na Papua-Nova Guiné, não tem comparação”, sublinham. E esses períodos de isolamento no barco vão de facto acontecer, até porque o veleiro de 14 metros anda a uma velocidade de 14km/h. “Num dia bom, nós fazemos 300 quilómetros”, aponta João, enquanto explica que há opção de recorrer a um motor que tem autonomia para oito dias, embora o objectivo seja mesmo andar ao sabor do vento.
O que a pandemia trouxe foi uma maior habituação ao regime de ensino fora da escola. Segundo João, “Portugal é um país onde o ensino doméstico é simplificado, as escolas permitem fazê-lo”. As tarefas vão ser divididas pelos pais, sempre com o apoio dos professores através da Internet via satélite de que o barco dispõe. Embora não dê para sessões de cinema, “é suficiente para e-mails e chamadas de voz”, revela o capitão acerca da Internet no veleiro.
“Os professores sabem que somos pessoas responsáveis e não queremos que os miúdos sejam analfabetos”, sublinha Inês Saldanha. A vertente formal do ensino vai ser substituída pela componente prática. “As línguas aprendem-se nos locais. Geografia através da navegação. Os miúdos podem aprender Biologia com a pesca que vamos fazer”, exemplifica o pai da família.
De facto, a pesca será uma das principais formas de alimentação dos seis tripulantes. Apesar disso, a regra para mantimentos e água é do dobro. “Se vamos fazer uma travessia que dure 15 dias, levámos água e comida para um mês”, explica o casal. A bordo terão também uma dessalinizadora que consegue transformar a água do mar em água potável.
Essa falta de rigidez nos prazos é coerente com o ar descontraído da família. Enquanto os pais explicam os planos, os filhos brincam descalços alegremente junto aos barcos. “Se chegarmos a um sítio e adorarmos, ficamos lá dois meses. Se o Francisco fizer um amigo num sítio qualquer e quiser ficar mais tempo, então claro que ficamos”, expressa a mãe de 36 anos. “Não vamos com pressa. Vamos andar ao sabor do que a nossa família quiser e daquilo que nos está a apetecer fazer”, remata.
Se a duração da viagem não é certa, o percurso também não está escrito em pedra. “Temos uma ideia geral que segue as tendências do vento, mas podemos fazer desvios”, nota o capitão. No meio de todos os destinos em que se pode parar pelo caminho, há um que já está certo: Gâmbia. E porquê? “Porque é muito importante cativar os miúdos nos primeiros tempos. É quando vão sentir as maiores dificuldades em termos de habituação”, começa por explicar Inês. O país africano é atravessado por um rio que a família quer percorrer para “ganhar os filhos”, uma vez que adoram animais e a viagem será “como um safari”. “É quase como uma estratégia de marketing” que vai levar “entre dois a três meses”, conclui a mãe.
Teste no Verão passado foi “terrível"
Esta não será a primeira vez que a família segue junta para o mar. No Verão passado fizeram uma espécie de estágio. “Em Julho arrancamos até ao Algarve e regressamos em Setembro”, conta João. Sem que possa continuar, Inês interrompe: “Foi terrível, foi assustador, foi muito difícil.” A mãe de quatro diz que, naquela altura “o sonho idílico de viajar pelo mundo acabou ali”.
Contudo, isso não significa que se tenha perdido a motivação de avançar para a aventura. “No Verão, este projecto deixou de ser um sonho e tornou-se realidade. Isto é uma vida dura, um trabalho pesado. Não é como eu idealizei e estar de biquíni a apanhar sol. Mas continuamos todos motivados”, sublinha Inês, que reconhece que “poder não trabalhar e viajar a tempo inteiro é um luxo.” Ainda assim, “esse luxo tem outras partes” a que não estava habituada.
O casal reconhece que os membros da família que vão zarpar este ano não serão os mesmos que vão atracar nem eles sabem quando. “Quero que eles [os filhos] percebam que o mundo é redondo e que isto está tudo unido. Nós já viajamos, mas queremos que eles percebam que a Terra é a nossa casa e que, afinal, somos todos muito parecidos e estamos todos interligados”, idealiza o pai, que admite que vão chegar “todos diferentes”. Mas o tempo longe de casa, para já, não preocupa as crianças. “Isto para eles não é nada. Eles acham que são piratas!”, brinca a mãe.
Para o futuro já se fazem planos. Talvez comprar uma quinta, talvez viajar pelo Mediterrâneo. “Mas não te esqueças que já me prometeste uma viagem à minha maneira!”, alerta Inês. E a sua maneira “não era de barco”, confessa. “Gostava muito de fazer a América do Sul e Ásia com a mochila às costas.” O certo é que o regresso a uma vida “normal” não está nos planos. “Eu não idealizo mais a minha vida daqui para a frente com 22 dias de férias por ano. Eu sei que é a vida que a maior parte das pessoas tem, mas não é a que encaixa connosco. A vida é muito mais do que isso”, conclui.
Os membros do casal dizem ter ficado “extremamente surpreendidos” com o interesse que a sua decisão de viajar pelo mundo gerou. Através da conta de Instagram chegam diariamente perguntas e comentários de pessoas de todo o país que “estão realmente interessadas em fazer o mesmo” que a família. “A nossa aventura está a mover as pessoas de uma forma impressionante”, conta Inês.
“Há muita gente que olha para nós e começa a repensar a sua vida. É bom fazer com que as pessoas se questionem se estagnaram”, considera a mãe da família, que diz estar disponível para responder às questões de quem vê o projecto como algo a seguir de perto.