A Volta ao Mundo em 80 Catástrofes para falar de mortes colectivas, estátuas e monumentos

É um guia que categoriza e mostra 80 memoriais públicos que evocam catástrofes, nascido pela mão dos Left Hand Rotation. O colectivo quer desvendar a ideologia e valores por detrás de cada imagem e relembrar: “Tudo aquilo que está no espaço público está em território comum de discussão.”

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daniel rocha

Foi um “grande acaso” este projecto estar terminado pouco tempo antes do assassinato de George Floyd, em Maio, e da onda de protestos que o acontecimento desencadeou por todo o mundo — muitos deles marcados pelo derrube de estátuas de figuras colonialistas ou esclavagistas (passando também por Portugal). “Derrubar estátuas é apagar a história”, diziam uns; “mas queremos imagens que contestam os nossos valores enquanto sociedade expostas no espaço público?”, perguntavam outros. E o colectivo Left Hand Rotation observava a discussão com “entusiasmo”.

“Celebrámos com entusiasmo essa tendência que combina reflexão e acções críticas e questiona a perpetuação de um pensamento colonial legitimado no espaço público através do monumento. O ataque a monumentos racistas, coloniais, especistas e machistas é a expressão colectiva de um espaço verdadeiramente público”, escrevem ao P3. A Volta ao Mundo em 80 Catástrofes gravita à volta destas ideias. É um “modesto catálogo de monumentos comemorativos erguidos em todo o mundo em homenagem à memória de mortes colectivas, sejam elas vítimas de crimes contra a humanidade nas suas mais variadas formas ou causadas por catástrofes naturais”.

Os memoriais públicos que evocam as catástrofes, que tantas vezes vemos como meramente decorativos, estão, no entanto, “carregados de ideologia e valores funcionais”, sendo “mais úteis para a legitimação do poder instituído do que para a recuperação das comunidades afectadas pelo desastre”, atira o colectivo de espanhóis sediado em Lisboa. “Essa função é evidenciada não apenas no tributo selectivo à memória, mas também na prática do esquecimento, que classifica a tragédia de acordo com a qualidade das suas vítimas ou evita deliberadamente a revisão histórica das atrocidades ocidentais”, continuam.

Por isso, quando há dez anos repararam na “existência de monumentos em homenagem às mortes colectivas”, em Bali, na Indonésia, uma ideia foi plantada. E o período de quarentena deu-lhes o tempo necessário para a materializar. O gatilho foi “um grande obelisco que lembrava a morte de mais de 200 pessoas num ataque terrorista contra turistas”, relembram. “Em torno desses monumentos públicos específicos, muitas das reflexões e preocupações habituais do colectivo cruzam-se: o fenómeno turístico, o espaço público, a gestão pública da catástrofe e da memória colectiva, a morte, a colonização, entre muitos outros.”

Para a curadoria do catálogo dos 80 monumentos, o colectivo começou por incluir aqueles com os quais tinham “experiência directa” e, posteriormente, pesquisaram mais, “tentando cobrir territórios e categorias que pareciam mais interessantes”. “O arquivo não pretende ser exaustivo. É uma selecção que pode continuar a ser expandida, um processo aberto de reflexão”, referem. Na lista, constam monumentos como o memorial às vítimas do massacre judaico de 1506, em Lisboa, o memorial às vítimas do furacão Katrina, no Mississipi, a estátua de libertação dos escravos, no Senegal, o memorial às vítimas do massacre de Nanquim, na China, ou o Rainbow Warrior da Greenpeace, na Nova Zelândia. A estes, juntam-se outros 75 espalhados por todos os continentes e mais de 50 países.

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Pouco a pouco, aquando da acumulação de material, foram surgindo algumas categorias básicas, onde foi encaixado cada um dos monumentos. Ao todo, são 14: genocídio, matança, epidemia, crime ambiental, atentado por tiroteio, atentado por bomba, guerra, feminicídio, incêndio, desastre natural, acidente de transporte marítimo, acidente de transporte aéreo, acidente de transporte terrestre e catástrofe nuclear. E o resultado final pretende abrir uma reflexão sobre “os vestígios das viagens de uma sociedade sedentária que encontrou no turismo a subversão máxima dos princípios do nomadismo, a morte do significado que essa indústria implica e a necessidade de contestar a memória perpetuada no espaço público”.

Além do catálogo, o colectivo andou pelas ruas de Lisboa a destacar alguns monumentos em homenagem às mortes colectivas na cidade e a etiquetá-los de acordo com a categoria e o número de mortes que resultou do acontecimento. Fizeram-no “numa placa em memória aos mortos do tiroteio da PIDE no Chiado (roubada em 2014 e reposta mais tarde), passando pelas Ruínas no Carmo (categoria ‘Desastre Natural’ por representar o terramoto de 1755), pelo massacre aos judeus de Lisboa de 1506 (categoria ‘Genocídio’), até uma escultura em homenagem aos bombeiros no cemitério do Alto de S. João (construído em 1833 por causa da cólera)”, entre outros. Encontraram, assim, “diferentes categorias do desastre, diferente gestão da memória e do esquecimento” espalhadas pela cidade.

A primeira edição do guia em forma de catálogo está terminada, mas a possibilidade de expandir o projecto está em cima da mesa — e até poderá passar para outros formatos, como o vídeo, uma das ferramentas que utilizam, como já vimos em Terramotourism e em O que vai acontecer aqui?, e também utilizado para registar a acção feita em Lisboa. No futuro, pretendem editar um guia em papel, para oferecer, com um capítulo especial sobre Portugal, que deverá passar por Matosinhos, com o monumento ao naufrágio de 1947, pelo Porto, com a estátua do incêndio do Teatro Baquet, pelo Algarve, com o monumento a Tavira, ou com as placas que lembram as vítimas das cheias de 1967 e o monumento às vítimas do fogo em Pedrógão Grande.

“Tudo aquilo que está no espaço público está em território comum de discussão”, afirmam, ainda a propósito de George Floyd, mas também em jeito de conclusão. Os monumentos “são sempre símbolos do poder hegemónico que, muitas vezes, pouco ou nada tem a ver com a memória dos cidadãos”. Chamar de “vandalização” ao movimento de derrube de estátuas é, para o colectivo, “muito curioso”: “O termo vem dos vândalos, o povo germânico que gostava de colonizar outros lugares. É bastante irónico porque é justamente o vandalismo que está a ser criticado nessas acções contra os monumentos. (E não foi mais vândalo matar mais de 50 milhões de indígenas durante quatro séculos?)”