Eurodeputados exigem revisões antes de votar proposta de orçamento do Conselho Europeu

Presidente da Comissão reconhece que a proposta para o próximo quadro financeiro é “difícil de engolir”. Mesmo assim pede que o Parlamento Europeu dê luz verde ao pacote global negociado pelos líderes, que mobiliza 13% do PIB europeu, para a resposta à crise.

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STEPHANIE LECOCQ/EPA

Numa resolução aprovada com 465 votos a favor, 150 contra e 67 abstenções, o Parlamento Europeu deixou claro o seu desagrado com o acordo fechado pelos líderes europeus na longa cimeira extraordinária para responder à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.

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Numa resolução aprovada com 465 votos a favor, 150 contra e 67 abstenções, o Parlamento Europeu deixou claro o seu desagrado com o acordo fechado pelos líderes europeus na longa cimeira extraordinária para responder à crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.

“Não aceitamos o acordo político sobre o próximo quadro financeiro plurianual”, disseram os eurodeputados, que concordaram em “reservar” o seu consentimento, na expectativa de que uma “proposta mais satisfatória” possa emergir das negociações que agora se abrem com o Conselho da UE para a aprovação dos 40 programas financiados pelo orçamento comunitário.

Os 27 chefes de Estado e de governo da União Europeia aprovaram, esta terça-feira, um pacote global de 1,8 biliões de euros para apoiar o relançamento e a transformação da economia europeia no rescaldo da crise. O plano inclui a constituição de um novo instrumento financeiro, um fundo de recuperação no valor de 750 mil milhões de euros, que serão distribuídos pelos Estados-membros através do próximo quadro financeiro plurianual (QFP) para 2021-27, cujo volume global foi fixado em 1,074 biliões de euros — muito abaixo das pretensões do Parlamento Europeu, que defendia um orçamento de 1,32 biliões de euros.

“Sei bem que este quadro financeiro plurianual é um comprimido difícil de engolir”, reconheceu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que não deixou de criticar algumas “decisões lamentáveis e dolorosas” tomadas pelos líderes, que esvaziaram os envelopes financeiros das chamadas políticas tradicionais da agricultura e da coesão, e das novas políticas de migrações, segurança e defesa, e ainda reduziram o financiamento previsto para programas de saúde, investigação científica, transição energética e apoio ao investimento privado. 

Para os eurodeputados, mais do que “lamentáveis”, estas decisões são verdadeiramente “incompreensíveis” na actual conjuntura pandémica.

“Cremos que esta proposta não responde aos desafios e não está orientada para o futuro”, criticou o líder da bancada majoritária do Partido Popular Europeu. Manfred Weber assinalou a dificuldade em aprovar um orçamento que “não corresponde às promessas que fizemos aos nossos eleitores”, e que contém “cortes dramáticos” nas políticas de valor acrescentado europeu. “Guarda de fronteiras, combate ao cancro, apoio a África e à vizinhança? Cortes, cortes, cortes”, apontou.

Mas, crucialmente, nem durante o debate no hemiciclo, nem na resolução (que é apenas uma avaliação política) aprovada esta quinta-feira, na última sessão plenária antes das férias de Verão, os eurodeputados ameaçaram vetar o próximo exercício plurianual como é sua prerrogativa, de acordo com o artigo 312.º do Tratado da União Europeia que prevê uma maioria absoluta no Parlamento Europeu para a adopção do orçamento. 

“Não vamos carimbar um facto consumado”, diz a resolução, onde o Parlamento manifesta a sua disponibilidade para iniciar “de imediato” as negociações com o Conselho da UE, com o objectivo de melhorar os termos da proposta para o novo quadro orçamental.

O novo fundo de recuperação não tem de ser aprovado pelos eurodeputados — embora a sua constituição implique uma decisão para aumentar a margem virtual entre os pagamentos e os recursos próprios do orçamento, que tem de ser ratificada pelos parlamentos nacionais.

Fundo de recuperação aplaudido

Aliás, antes dos ataques contundentes à proposta do QFP, os eurodeputados distribuiram elogios e aplausos pela aprovação do fundo de recuperação “Próxima Geração UE”, assente na emissão de dívida europeia. O acordo do Conselho Europeu “passará aos anais da História”, frisou a líder do grupo dos Socialistas e Democratas, Iratxe García.

Na longa lista de críticas ao acordo fechado pelos líderes para o quadro financeiro plurianual, além dos cortes, há outras questões que os parlamentares consideram muito problemáticas. É o caso, por exemplo, da manutenção do regime de “rebates”, ou descontos, para aligeirar as contribuições nacionais dos países mais ricos para o orçamento.

“É verdade que [estas compensações] cresceram para quatro países”, admitiu o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, referindo-se à Áustria, Dinamarca, Países Baixos e Suécia, o chamado “grupo dos frugais” que ameaçou travar a resposta à crise durante a cimeira.

Em ternos de financiamento, a questão que mais incomoda o Parlamento Europeu tem a ver com os recursos próprios, isto é, fontes de receita alternativas às transferências dos Estados-membros, uma reivindicação antiga dos eurodeputados.

No Conselho Europeu, os líderes aceitaram a aplicação de uma nova taxa sobre os plásticos não reciclados, que entraria em vigor já no arranque do quadro, em Janeiro de 2021.

Outros novos recursos próprios, como por exemplo taxas sobre o digital, as transacções financeiras, ou o preço do carbono — na forma de um mecanismo de ajustamento de carbono nas fronteiras, ou uma extensão do sistema de comércio de emissões à aviação e sector marítimo — foram apontados como “desejáveis”.

No documento aprovado esta quinta-feira, os eurodeputados avisam: sem um “calendário juridicamente vinculativo” para a introdução destes impostos europeus, não há consentimento para o QFP.

Dinheiro e os “valores fundamentais” da Europa

A outra matéria em que o Parlamento prometeu fazer finca-pé tem a ver com o cumprimento das normas do Estado de Direito. “O dinheiro europeu não pode servir para financiar líderes que todos os dias voltam as costas aos nossos valores fundamentais. O meu grupo só dará o seu acordo [ao QFP] com regras claras a ligar as transferências ao respeito pelas regras do Estado de Direito”, avisou Dacian Ciolos, o líder da bancada Renovar a Europa. 

O liberal não está sozinho na sua exigência. Em nome dos Verdes, Philippe Lamberts recusou compromissos com os blocos dos “forretas” e dos “pseudo-democratas” que olham para a UE como uma caixa multibanco. “Nem um só euro para os governos que não actuam em respeito pelos nossos valores”, exortou a socialista Iratxe García, repetindo o que Weber dissera minutos antes: “Temos de ser claros que não haverá dinheiro.”

Ursula von der Leyen, a quem coube a tarefa de defender o pacote global acertado pelos líderes, juntamente com o presidente Conselho Europeu, prometeu remediar ou mitigar alguns dos problemas apontados pelos eurodeputados, a quem pediu para “não perder de vista o quadro maior”.

“Alcançámos um acordo para um pacote de estímulo sem precedentes, de 1,8 biliões de euros”, cerca de 13% da riqueza dos 27, assinalou. “Olhem para o resto do mundo e digam se alguém foi tão longe como nós”, comparou. “Na UE, agimos de forma rápida e decisiva, e em menos de dois meses conseguimos aprovar uma resposta à crise mais robusta do que a dos Estados Unidos e da China”, completou Charles Michel.