Mulher vítima. Criança vítima
As crianças que assistem a violência na família, e que vivenciam ambientes violentos no seu dia a dia, desenvolvem várias patologias físicas e psíquicas que afetam profundamente o seu desenvolvimento.
Há 37 anos um grupo de pessoas de diferentes áreas profissionais sonhava com uma instituição que defendesse a Criança como sujeito de direitos. E o sonho tornou-se realidade a partir do momento em que o Dr. João dos Santos me entregou em mão um manuscrito: A caminho de uma utopia: um Instituto da Criança, a que se seguiram muitas reuniões, muita dedicação e muito amor pela Criança.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Há 37 anos um grupo de pessoas de diferentes áreas profissionais sonhava com uma instituição que defendesse a Criança como sujeito de direitos. E o sonho tornou-se realidade a partir do momento em que o Dr. João dos Santos me entregou em mão um manuscrito: A caminho de uma utopia: um Instituto da Criança, a que se seguiram muitas reuniões, muita dedicação e muito amor pela Criança.
Em 1983, no I Congresso realizado pelo Instituto de Apoio à Criança (IAC) na Gulbenkian, em Lisboa, imediatamente se estabeleceu como prioridade as Crianças maltratadas e abusadas sexualmente, de quem nem a comunicação social falava e que é o crime mais repugnante e monstruoso em relação à Criança.
As Nações Unidas só viriam a aprovar a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989 — seis anos depois da criação do IAC. Momento importantíssimo para todo o mundo, pois veio reconhecer que a Criança é um ser autónomo, sujeito de direitos, chamando a atenção para a necessidade de, em primeiro lugar, ter em consideração o seu “Superior Interesse”.
O IAC promove a defesa dos Direitos da Criança na família, na escola e na saúde, mantendo intervenção direta em domínios não cobertos nem pelo Estado nem por outras entidades, nomeadamente através dos Serviços SOS-Criança, tendo apoiado mais de 150 mil situações; Criança Desaparecida, sendo a única instituição portuguesa integrada na Federação Europeia das Crianças Desaparecidas (116 mil); Humanização dos Serviços de Atendimento à Criança; Apoio Jurídico; um Centro de Estudos e Documentação sobre a Infância; Mediação Escolar e Atividade Lúdica, apoiando mais de 700 espaços lúdicos por todo o país; e o Guia dos Direitos da Criança, compilação de toda a legislação existente sobre a Criança. O Projeto Rua – Em Família para Crescer foi o único projeto inovador a nível europeu aprovado para Portugal ao abrigo do III Programa de Luta Contra a Pobreza, em 1989. As Crianças de rua eram até então ignoradas, em Portugal e na Europa.
Gostaria, ainda, de realçar o contributo que temos dado para a mudança de legislação relacionada com a defesa do direito fundamental da Criança à integridade pessoal e à sua dignidade, como aconteceu com o registo criminal dos técnicos que trabalham com Crianças e a revogação do n.º3 do Art.º 30.º do Código Penal, que permitia a atenuação especial por aplicação do crime continuado (com um especial apoio do então ministro da Justiça, Dr. Alberto Martins), e as iniciativas relacionadas com as videoconferências das Crianças abusadas e a exigência do direito da Criança a ser ouvida.
E destacaria também o documento entregue pelo IAC em 2008 na Assembleia da República, pedindo a clarificação do Superior Interesse da Criança, reconhecendo que a estruturação da sua personalidade se baseia na vinculação psicológica e nas relações profundas de afeto que se estabelecem nos primeiros anos de vida – documento elaborado, com toda a sua competência, experiência e sensibilidade, pela procuradora Dulce Rocha, atual presidente do IAC.
Porque a Criança não tem sindicato, tem de ter pessoas e instituições que lhe dêem voz e defendam os seus direitos. E como temos feito ao longo dos anos, quando há leis e situações injustas, temos de as modificar.
Por isso, a petição hoje entregue em mão ao Presidente da Assembleia da República, assinada por mais de 40 mil pessoas, e dinamizada com grande dedicação, inteligência e amor à Criança pela pintora Francisca de Magalhães Barros com o apoio da advogada Isabel Aguiar-Branco, é da maior importância.
As leis têm de ser claras e não dar lugar a interpretações dúbias, ao sabor de quem as aplica. E, neste caso, o Art.º 67-A do Código do Processo Penal tem de dizer claramente que a Criança também é vítima quando assiste a agressões violentas em contexto familiar, mesmo que ela própria não seja agredida.
Sabe-se hoje, como todos os estudos demonstram, que as Crianças que assistem a violência na família, e que vivenciam ambientes violentos no seu dia a dia, desenvolvem várias patologias físicas e psíquicas que afetam profundamente o seu desenvolvimento, impedindo-as de crescer de forma harmoniosa, marcando irreversivelmente o curso da sua vida.
A violência doméstica tem um impacto muito traumático nas Crianças, e é por isso que a Lei deve consagrar expressamente este conceito mais alargado que corresponde ao conhecimento científico atual sobre esta matéria tão complexa quão devastadora.
A petição hoje entregue tem, pois, como grande objetivo a exigência de uma legislação clara e inequívoca.
Os fundamentos apresentados no sentido de que as normas legais existentes já permitiam essa proteção não são realistas. Com efeito, o que se constata é que as instâncias de decisão não consentem essa interpretação, o que conduz a uma desproteção da Criança vítima. Urge por isso aprovar medidas claras que respondam a essa necessidade.
As leis têm de ser inequívocas e fundamentalmente ter uma dimensão humana, não podendo haver interpretações consoante os estados de alma dos magistrados, como aconteceu recentemente (ver artigo que escrevi a 28 de maio para o Jornal de Notícias), em que o Tribunal da Relação de Évora anulou a sentença do Tribunal de Setúbal que condenou um pai a 8,5 anos de prisão por agredir e violar a filha de 12 anos (quando a Criança chegou a ser assistida no Hospital de S. Bernardo, em Setúbal, e teve uma perícia psicológica do Instituto de Medicina Legal durante a investigação e um perito médico em julgamento).
Crimes repugnantes e monstruosos não podem destruir para sempre vidas de Crianças indefesas e que têm direito a ser felizes e a ser-lhes reconhecida a sua dignidade.
Diz o Papa Francisco que “estamos num mundo globalmente desumanizado e indiferente”. Infelizmente esta é uma verdade vivida no dia-a-dia. Mas não podemos desistir de deixar aos nossos filhos e netos um mundo mais solidário, mais fraterno e mais humano.
Num artigo excelente no Expresso desta semana, a nossa ministra da Justiça e boa amiga Francisca Van Dunem, que tem feito um trabalho notável, com toda a sua competência e sensibilidade, fala no grande investimento que se tem feito na transformação digital e na modernização da Justiça. Mas penso que em todos os setores da vida pública e privada, no mundo inteiro, é fundamental que a grande prioridade seja a qualidade humana – que os portugueses têm cultivado ao longo da sua história.
Como diz Hannah Arendt é preciso não ceder à “banalidade do mal”. E é preciso continuar a sonhar. Sobre este tema tão doloroso de uma Criança assistir a violência doméstica, no seio da família que a deve proteger, havemos de fazer uma grande conferência com testemunhos de grandes personalidades, para a qual iremos convidar Graça Machel, agora tão ferida com as agressões à filha Josina; e com Marta Santos Pais, uma portuguesa com grande prestígio nas Nações Unidas e representante especial da Secretária-Geral para a Violência contra a Criança.
Termino parafraseando Eugénio de Andrade: “É urgente o amor.” O amor pela Criança, pela sua dignidade, alegria e bem-estar, para que tenhamos jovens responsáveis e felizes e cidadãos ativos e solidários. Como dizia João dos Santos, é a partir de Crianças mais felizes que teremos adultos mais felizes. Tudo o que acontece na infância deixa marcas profundas. Para sempre.
A autora escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico