Para não acabar de vez com o tempo e a empatia
Tempo, silêncio, pensamento crítico, empatia. Acredito na Cultura e nas artes como lugares de resistência e desaceleração.
Revisitando Bachelard há uns anos, deparei-me, n’A Poética do Espaço, com a alusão a um poema de Rainer Maria Rilke que convoca esta reveladora imagem: “Essas árvores são magníficas, mas mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas.” Esta é, porventura, uma das melhores metáforas que conheço para falar do papel da Cultura e das artes na sociedade contemporânea. Falo, antes de mais, de um mundo onde nos vamos esquecendo amiúde de olhar atenta e demoradamente para os interstícios, para os intervalos e margens, para tudo o que está entre e fora do centro, bem como da nossa tentação quase instintiva para preencher logo o “vazio”, evitar a potencial pausa, não abdicar do movimento vertiginoso, optar pela permanente conectividade, em multi-camadas. É o “ciclo da dopamina”: quanto mais somos inundados de estímulos mais queremos ser distraídos.
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Revisitando Bachelard há uns anos, deparei-me, n’A Poética do Espaço, com a alusão a um poema de Rainer Maria Rilke que convoca esta reveladora imagem: “Essas árvores são magníficas, mas mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas.” Esta é, porventura, uma das melhores metáforas que conheço para falar do papel da Cultura e das artes na sociedade contemporânea. Falo, antes de mais, de um mundo onde nos vamos esquecendo amiúde de olhar atenta e demoradamente para os interstícios, para os intervalos e margens, para tudo o que está entre e fora do centro, bem como da nossa tentação quase instintiva para preencher logo o “vazio”, evitar a potencial pausa, não abdicar do movimento vertiginoso, optar pela permanente conectividade, em multi-camadas. É o “ciclo da dopamina”: quanto mais somos inundados de estímulos mais queremos ser distraídos.
É conhecida a ideia do filósofo Blaise Pascal de que toda a infelicidade humana provém do facto de não sabermos estar quietos num lugar, sendo que um estudo conjunto das universidades de Virginia e Harvard, nos EUA, acaba por ir ao encontro dessa mesma linha de pensamento. Os investigadores deixaram os participantes (entre os 18 e os 77 anos, das mais diversas origens e perfis) num quarto sozinhos durante um período de seis a quinze minutos, sem música, material de leitura ou acesso a telemóveis ou a outros dispositivos electrónicos. Apesar da heterogeneidade do grupo, os resultados foram idênticos, verificando-se que quase todos se sentiram desconfortáveis e com manifesta dificuldade em se concentrarem apesar de não serem interrompidos. Esta experiência foi levada ainda mais longe para aferir dos limites e resistência dos testados, neste caso se estes prefeririam fazer algo desagradável, como sujeitarem-se a um choque eléctrico em detrimento de permanecerem sentados em silêncio. Cada um foi então submetido previamente a um choque idêntico e sabia de antemão quão penosa e dolorosa seria essa opção. Porém, quase metade dos participantes acabou por premir o botão para receber um choque eléctrico para assim reduzir o tempo que teria de ficar imóvel em silêncio.
Em contraponto, um estudo feito com executivos constatou que os japoneses não se importavam de deixar de falar por até 8,2 segundos, quase o dobro do limite dos falantes de inglês. Nesta cultura, que valoriza o poder do silêncio (“haragei”), acredita-se que quando alguém precisa das palavras é porque fracassou na tentativa de entender e de comunicar com o outro. Os próprios gurus da gestão e do marketing sabem bem que o recurso às pausas intencionais é essencial para que a audiência não perca os pontos-chave do seu discurso, pois esse silêncio não previsto tende a deixar o ouvinte (habitualmente hiper-estimulado) mais alerta, sensível e até ansioso, sendo a sua reacção mais usual a de parar e prestar mais atenção. As pesquisas do físico Luciano Bernardi, que em 2006 estudou as mudanças cardiovasculares, cérebro-vasculares e respiratórias induzidas por tipos diferentes de músicas em seres humanos, tiveram como uma das principais descobertas (aspecto que até era considerado irrelevante na proposta inicial da investigação) que hiatos silenciosos de dois minutos entre músicas produziam uma maior expansão da percepção e um relaxamento mais significativo do que a audição em si de músicas normalmente consideradas apaziguadoras.
O silêncio introduz assim uma cesura vital e urgente nesta temporalidade sem fôlego, na sobrecarga em contínua expansão e na homogeneidade ininterrupta em que vivemos derivadas das novas tecnologias e da globalização. Não deixa de ser irónico/simbólico o facto de, em 2004, em Londres, para transmitir um concerto da Sinfónica da BBC em torno da composição 4’33 de John Cage — obra musical icónica (e polémica) que consiste em quatro minutos e 33 segundos de completo silêncio —, a rádio da BBC ter desligado o seu sistema de emergência por este ser activado sempre que um silêncio prolongado surge na programação.
Face à “esquizofonia”, à crescente “surdez” da sociedade e — sublinho este ponto menos abordado — a um tratamento acústico dos espaços públicos ainda muitas vezes desajustado e pouco eficaz, continuamos num estado de significativo analfabetismo em relação ao silêncio e à arte de verdadeiramente escutar, pois “ouvir é a maneira mais pura de calar” (Filipa Leal). Estudos recentes em torno da reacção das aves ao aumento dos níveis de ruído em áreas urbanas têm demonstrado que o seu próprio canto se modificou. Os tons mais baixos estão a desaparecer e a ser substituídos por frequências mais altas que agora competem com o ruído de origem humana. Esta nova sonoridade levou, entre outras consequências, a uma maior dificuldade das aves em atrair um companheiro (em criar empatia com o outro) e, assim, a porem menos ovos. A nutrição existencial, esse caminho para todas as coisas grandes (como sublinhava Nietzsche), que a iniciação numa qualidade de silêncio e na sua “afinação” proporcionam constitui, sem dúvida, um dos maiores desafios actuais para o humano e talvez o que de mais significativo sejamos capazes de partilhar não encontre no mundo linguagem mais adequada do que o silêncio. Como diversos estudos realizados em laboratório têm atestado, este ajuda a desenvolver novas células no hipocampo, área do cérebro que está relacionada com a emoção, a aprendizagem e a memória, desencadeando processos de regeneração neuronal.
Por outro lado, o tempo, a “doença do tempo”. Gilles Lipovetsky chama a atenção para a falta de tempo actual do indivíduo na realização de práticas em nome da sua salvação. “O hiperindivíduo não tem tempo, é sem-tempo por constituição.” E aqui virou-se o feitiço contra o seu autor: da invenção humana do tempo à saturação do seu lugar na vida do homem. Nesta (pretensa?) aprendizagem da gestão do tempo constata-se uma postura de enorme resistência face ao acto de parar porque, de alguma forma, o movimento-velocidade se nos afigura uma dimensão mais fácil de vivenciar. A realidade actual é extremamente pressionante no que toca à exigência impaciente de uma reacção-resposta imediata (e tipificada), de uma decisão rápida, como que instantânea (sob demanda) nos seus múltiplos contextos, físicos e virtuais. Daí que, ao invés, a lentidão que foge à lógica meramente funcional e utilitária se revele um instrumento essencial para uma atitude menos compulsiva, mecânica, repetitiva e banal. Peter Handke clamaria mesmo por “um deus da lentidão” que revelasse a verdade ao compasso da “manivela da vida” (como diria o poeta Almada Negreiros), votando os canais da percepção do homem à captação demorada da realidade de modo a reduzir assim a sua rapidez excessiva. Como se a verdade fosse uma velocidade.
As próprias investigações em neurociência têm demonstrado que a evolução escolheu, na construção do cérebro humano, a técnica da lentidão, enquanto para os outros animais escolheu a da rapidez. Com a palavra surge o pensamento lento, em contraponto aos mecanismos ancestrais rápidos de resposta ao ambiente — o pensamento rápido —, que são caracterizados por serem automáticos ou quase automáticos. Lamberto Maffei, médico e cientista italiano, tem apontado para a excessiva prevalência dos mecanismos do pensamento rápido ou “digital” em detrimento das potencialidades do “pensamento lento”, baseado na linguagem e na escrita. Não é por acaso que o sistema nervoso humano é de amadurecimento lento quando comparado com o desenvolvimento cerebral de outros mamíferos. O aludido investigador adverte mesmo: “uma sociedade que se põe em competição com a biologia está destinada a perder.”
Em Maio de 2010, no MoMa, em Nova Iorque, Marina Abramović apresentaria a performance The artist is present, em que, durante três meses e por várias horas do dia, a criadora sentou-se numa cadeira e, um a um, os visitantes do museu sentavam-se à sua frente, sem contacto verbal, e a performer dedicava-lhes então uma atenção exclusiva, tendo esta proposta artística provocado reacções intensas e plurais no público. Abramović atribuiria esse forte impacto ao facto de ela própria estar fisicamente presente, de forma activa, no contexto em causa e disponível por tempo indeterminado. Isto quando actualmente a escassez de tempo para a dedicação ao outro parece ser cada vez maior, num mundo dominado por uma economia da atenção e por uma “servidão voluntária” (expressão do jornalista Bruno Patino) ao capitalismo digital, em que o tempo médio de atenção da chamada geração Y é de nove segundos, menos um do que a dos peixes-vermelhos.
Um terceiro ponto: a urgência de um pensamento crítico (para lá da epiderme, do impressionismo, da adesão puramente emocional), hoje cada vez mais intermitente e invisível. Mais uma vez, esse pensamento só é possível através de uma convivência lenta e demorada com as palavras, os conceitos, as ciências, as artes. Jack Goody, antropólogo britânico, preconiza que o pensamento crítico — que actualmente apenas ocupa um lugar de relevo em algumas áreas minoritárias da sociedade — só tem condições para desabrochar quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos no sentido da triagem fundamental: distinguir entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, o essencial e o acessório, o directo/explícito e o subjectivo.
E, last but not least, a empatia. Neste mundo tecnológico e capitalista quanto maior é o fluxo comunicacional menos presentes estamos a nível físico, erótico, afectivo e social nesse mesmo processo de (suposta) interacção. A permanente virtualização da amizade e da nossa energia emocional, derivada de processos de aceleração digital cada vez mais agressivos e rebuscados, aliada a um hiperindividualismo já amplamente debatido, distrai e afasta-nos amiúde da empatia e da sua respectiva dimensão política, a solidariedade. A tendência frequente para comunicarmos mais com quem partilha das mesmas opiniões e com quem reforça as nossas expectativas, num preocupante “efeito de câmara de eco”, instaura um ambiente comunicativo psicopatológico de que sobressai uma dificuldade, não assumida e nem sempre explícita, em aceitar a diferença, a alternância, o contraditório. Isso mina aspectos fulcrais do ecossistema relacional e social como a tolerância, a abertura, a reciprocidade, a paciência-espera, a deferência e responsabilidade, sem os quais não pode haver verdadeira empatia, democracia, humanidade, em suma, possibilidades de futuro.
Tempo, silêncio, pensamento crítico, empatia. Acredito na Cultura e nas artes como lugares de resistência e desaceleração que, introduzindo um movimento de descontinuidade num quotidiano extremamente saturado e difuso de estímulos, mensagens e reacções, nos convidam a uma relação lenta, imersiva e superlativa com essas quatro dimensões nucleares — com o espaço “vazio”, em branco, entre as árvores, com o imenso mundo subtil, frágil e subliminar que está entre, em última análise, com o transcendente. Esse é, provavelmente, o gesto mais revolucionário que podemos conceber nos dias que correm, no sentido da criação de assembleias humanas mais sensíveis, lúcidas, informadas, críticas e empáticas. Penso numa vida do espírito: respirar (n)os intervalos, reeducar o olhar sobre o pormenor e o não/menos óbvio, vislumbrar tonalidades e nuances intermédias, sentir a “música em estado de gravidez” (assim define Mia Couto o silêncio), abraçar margens olvidadas do quotidiano, escutar zonas periféricas mas vitais, mergulhar nas dimensões mais insondáveis do limbo (dessa “terra de ninguém”), valorizar as nuances, as pequenas “insignificâncias” e as horas dos “mágicos cansaços”.
E aqui as artes, em particular, devem assumir-se como “máquina de guerra” contra a banalidade, a cristalização, o automatismo, a formatação, a mediania (que vai grassando). Não concebo a criação artística senão como um universo que convida o outro para o significado, que sublinha uma vocação primordial para a ampliação e densificação do ser, abrindo o nosso campo de sensibilidade por várias vias que não poucas vezes se interpenetram: provocando um espanto singular e irrepetível, não necessariamente rotulável; gerando, pelo estranhamento, aquela inquietação — os solavancos interiores de que falava Flaubert — que conduz ao questionamento e (des)construção internos; transmitindo os delicados fios com que se fabrica o apaziguamento e a quietude; permitindo um reconhecimento/familiaridade e alinhamento “antigos” com a mensagem fruída.
Uma arte que ousa uma aproximação utópica, “estimulantemente falhada”, e uma permanente interrogação criativa do segredo-mistério como traço primacial e distintivo da condição humana — por contraponto a um mundo sempre iluminado, despido, dissecado/explicado e monitorizado pela tecnologia. Em rota de colisão com essa reificação imagética a que assistimos, centrada no imediatismo do “aqui e agora”, a atenção e a imaginação, ao invés, recordam e projectam, numa dinâmica de saltos temporais, preservando as preciosas imagens não presentes, aquelas que, no fundo, instauram a transformação maior: a nossa iniciação ao não visível.