Entidades reguladoras: entre o ser e parecer independente
Apesar de pressões externas para termos reguladoras mais independentes, as intensas ligações com Governos e empresas reguladas colocam em causa essa independência. Os riscos de captura e de prejuízo do interesse público são elevados.
Reparou que, de há uns anos a esta parte, a sua factura de água, serviços de saneamento e resíduos urbanos está mais detalhada, para que saiba exactamente o que está a pagar? Se sim, sabia que foi uma medida tomada pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) para aumentar a transparência? E sabia que hoje, quando vai ao banco subscrever um produto de investimento, tem que preencher um questionário que avalia a sua literacia financeira? Trata-se de uma imposição do Banco de Portugal (BdP), entidade reguladora do sector bancário, que visa garantir que não investe em produtos cujo funcionamento não compreende bem. Estas duas entidades reguladoras independentes, a par das outras nove que existem em Portugal, são cruciais para o funcionamento de certos mercados e têm um impacto forte nas nossas vidas, enquanto cidadãos e consumidores.
Em 2012, ano em que iniciei o meu doutoramento, as reguladoras estavam na berlinda, mas por maus motivos. Os reguladores financeiros de todo o mundo estavam a ser acusados de nada terem feito para evitar a crise financeira. Em Portugal, um colega da Universidade do Minho sugeriu que a reguladora das telecomunicações, a Anacom, teria beneficiado as empresas em prejuízo dos consumidores aquando da implementação da Televisão Digital Terrestre (TDT). Em ambas as situações, falava-se em captura regulatória, isto é, do facto de as entidades regulatórias beneficiarem uma das partes interessadas (uma empresa, um sector ou um partido) em prejuízo de outras, e do interesse público. As entidades reguladoras pareciam estar feridas na sua dimensão central — a independência. E foi precisamente isto que decidi investigar no âmbito da minha tese doutoramento — até que ponto as entidades reguladoras portuguesas estão em risco de captura, isto é, se são ou não independentes do poder político e das empresas que regulam.
Independentes, sim, mas em relação a quem?
As entidades reguladoras independentes surgiram após a privatização e liberalização de certos serviços de utilidade pública, como a electricidade ou as telecomunicações, que eram tradicionalmente monopólios estatais. No caso da liberalização dos mercados, as empresas públicas passaram a operar com a concorrência de privados. Contudo, os concorrentes privados temiam que essas empresas públicas fossem beneficiadas pelo Estado, por este ser, em simultâneo, proprietário da empresa, por um lado, e legislador e supervisor das regras do mercado, por outro. Este foi, por exemplo, o caso da Portugal Telecom, uma grande empresa pública que poderia fazer concorrência desleal às outras empresas que entravam no mercado.
Noutras situações, como, por exemplo, na privatização de grandes empresas públicas, importava que fossem assegurados os interesses dos investidores privados sem prejudicar, os princípios do serviço público. Por exemplo, na privatização da EDP, era necessário atrair investidores privados que comprassem acções da empresa, mas assegurando que toda a população mantinha o acesso à electricidade.
Concluiu-se, portanto, que era necessário haver uma autoridade com carácter técnico, que regulasse estes mercados imperfeitos, salvaguardando tanto os interesses privados e a livre concorrência como o interesse público e o acesso dos cidadãos a bens e serviços fundamentais. Nasceram, assim, as entidades reguladoras independentes: autoridades públicas que defendem os interesses dos cidadãos e que procuram assegurar uma concorrência justa entre empresas públicas e privadas. Mas, para tal, têm que ser independentes dessas empresas.
Para além de serem independentes das empresas que supervisionam, as entidades reguladoras também devem ser independentes em relação ao poder político, de modo a evitar que os Governos e partidos políticos usem a regulação para ganhos eleitorais, por exemplo. Foi o que terá acontecido em 2007, quando o presidente da ERSE, reguladora dos serviços energéticos, se demitiu porque o Governo aprovou tarifas diferentes das que o regulador tinha proposto.
Nos últimos 30 anos, têm surgido pressões de vários quadrantes para que os Governos criem estas entidades e abdiquem dos seus tradicionais poderes regulatórios e de tutela de órgãos públicos. É a chamada “visão tecnocrática” da administração pública, que coloca a especialização e a competência técnica acima da política. Em Portugal, a adopção do modelo das entidades independentes é ainda mais surpreendente, e positiva, tendo em conta o quadro de uma administração pública altamente centralizada e hierárquica, sobre a qual o Governo exerce um forte poder e cujos altos quadros são com frequência bastante politizados.
Na minha investigação, analisei o grau de independência das 11 entidades reguladoras nacionais (ver infografia) desde o início dos anos 90 até aos anos mais recentes sob quatro perspectivas cruzadas: na lei, na prática, em relação ao poder político e às empresas reguladas.
No que toca às leis que regem as entidades, tive em conta a forma de nomeação dos administradores, a duração e possibilidade de renovação do seu mandato, a autonomia financeira, se os administradores podem ter exercido cargo político ou de uma das empresas que vão regular, mas também se podem passar directamente da entidade reguladora para esses cargos. Analisei ainda todos os estatutos que as 11 reguladoras tiveram desde o início dos anos 90, num total de 31 diplomas legais, bem como 12 projectos de lei que os partidos apresentaram sobre estas matérias. Na dimensão prática, analisei, entre outros indicadores, quase 200 nomeações para a direcção das reguladoras, na sua larga maioria homens, porque só depois de 2013 passou a ser obrigatório o equilíbrio de género. Analisei se os indivíduos vinham de cargos políticos ou das empresas reguladas, que emprego obtiveram quando o seu mandato terminou e se o cumpriram até ao final ou se houve demissões.
Uma independência legal com peso e medida
Da análise dos diversos estatutos, identifiquei vários elementos interessantes. Em primeiro lugar, a ERSE e a Anacom, ou seja, as que regulam os serviços energéticos e a as telecomunicações, respectivamente, são as entidades reguladoras mais independentes, acabando por funcionar como exemplo para as restantes. Tal acontece porque são entidades que regulam sectores em que a União Europeia tem forte intervenção e em que as privatizações já ocorreram. Historicamente, as entidades reguladoras do sector financeiro gozavam de mais autonomia do que o resto da administração pública. Porém, quando todas as entidades viram os seus novos estatutos aprovados na sequência da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras de 2013, os reguladores financeiros passaram a ser, em comparação, os menos independentes. Isto deve-se a dois indicadores importantes: o primeiro é a falta de menção expressa sobre a independência dos administradores, o que pode abrir caminho a que se nomeiem pessoas com ligações directas ou indirectas a partidos ou empresas; o segundo é a inexistência de períodos de nojo anteriores à tomada do cargo, o que permite que os administradores venham directamente das empresas reguladas ou de um cargo político, aumentando o risco de fazerem favores aos seus anteriores empregadores.
Em segundo lugar, há uma significativa falta de consistência tanto entre sectores como ao longo do tempo, no que diz respeito à independência, tutela e responsabilidades. Porém, um elemento comum é que a maioria das entidades foi criada com graus relativamente baixos de independência e, ao longo do tempo, viu a sua independência aumentar de forma considerável. A lei-quadro teve um impacto em todos os estatutos aprovados nos anos seguintes e levou à convergência entre entidades, embora ainda haja diferenças, por exemplo, nos períodos de nojo que impedem os administradores de terem ligações às empresas reguladas. No entanto, alguns mecanismos de independência do poder político nunca foram introduzidos: por exemplo, os administradores continuam a ser nomeados pelo Governo, em vez de serem escolhidos por concurso público, e não existem “quarentenas” entre o lugar na reguladora e um cargo político, como sucede em relação às empresas reguladas.
O que explica a variação dos níveis de independência das entidades reguladoras? A primeira explicação é que a criação das reguladoras ou as revisões estatutárias ocorrem pela obrigação de transpor directivas europeias ou outros compromissos internacionais, como o Memorando de Entendimento assinado com a troika, ou porque é preciso atrair investidores aquando da privatização de empresas públicas. É isto que explica a mais alta independência legal da ERSE e da Anacom. Ou seja, os Governos não querem necessariamente dar mais independência às reguladoras; fazem-no porque são obrigados por organizações externas. Esta conclusão é reforçada por outro dado: comparando os estatutos aprovados pelos Governos e as propostas apresentadas pelos partidos na Assembleia da República nos últimos 20 anos, verifiquei que, independentemente do partido, quem está na oposição defende mais independência para as entidades reguladoras, mas tende a esquecer esta posição quando chega ao executivo.
As “portas giratórias”
Uma questão adicional que procurei investigar foi se o tipo de sector ajudava a explicar o grau de independência. Para esse efeito, dividi as entidades reguladoras em três categorias: sector financeiro (BdP, CMVM, ASF); indústrias em rede (ERSE, Anacom, AMT, ERSAR) e “outras” (AdC, ERS, ERC, ANAC). Olhando para a experiência anterior dos nomeados, verifiquei que é no sector das indústrias em rede que existem mais ex-políticos: perfazem 46% dos administradores no total, e atingem 50% na ERSE e 93% na AMT. Para além disso, é nas reguladoras financeiras que existem mais administradores vindos do sector que regulam – constituem mais de metade, aliás. Só no BdP, 62% dos administradores tem ligações ao sector que regulam. O mais curioso é que estas reguladoras financeiras também atraem muitos ex-políticos: 42% dos seus administradores já ocuparam lugares nos Governos ou outros cargos políticos.
Quando segui os percursos profissionais dos administradores quando saem da entidade, também encontrei dados curiosos. Por exemplo, quase 55% dos administradores das entidades financeiras encontram emprego nas empresas que regularam. Estamos perante as típicas “portas giratórias”, isto é, a circulação de indivíduos entre as empresas reguladas e a entidade reguladora. Este fenómeno já não se verifica nos administradores com experiência política. Alguns encontram lugares na política – veja-se Dulce Pássaro, que deixou o conselho directivo da ERSAR para integrar o Governo –, mas este não é o cenário/a trajectória mais comum. Muitos dispersam-se pelas empresas que regularam ou são nomeados para outros cargos na administração pública. Um lugar numa reguladora pode ser um trampolim de “boys” e “girls” partidários para voos mais altos.
Em resumo, as entidades reguladoras do sector das indústrias em rede onde existiam monopólios estatais que ainda hoje são grandes empresas são as mais dominadas pelos Governos, através da nomeação dos seus “boys” e “girls”. Uma mais alta independência legal não parece evitar tentativas de controlo por parte dos Governos. E vale a pena destacar que estas grandes empresas também apresentam uma grande concentração de ex-políticos nas suas administrações. O sector financeiro é aquele em que as ligações com o sector regulado é mais forte, antes e depois das nomeações. Nos restantes sectores, a proximidade com as empresas reguladas é bem menor. A AdC e a ERS parecem, na globalidade, ser as mais independentes, por não atraírem indivíduos com carreiras anteriores que possam criar conflitos de interesses e diminuir a sua independência. Quando saem da administração, estes indivíduos também não parecem escolher carreiras que possam vir a ser problemáticas.
Riscos de captura?
A investigação de doutoramento que dá origem a este artigo foi fundamental para demonstrar que existem riscos de captura em várias entidades reguladoras portuguesas, ou seja, de que estas sofram interferências externas que podem prejudicar o interesse público. No que toca aos Governos, a captura é possível, seja porque a lei ainda oferece espaço de manobra para poderem interferir na gestão ou nas decisões das entidades, seja porque estes não se coíbem mesmo de exercer o poder de controlo de que gozam. Importa, por isso, acompanhar com atenção questões como as cativações ou nomeações para cargos como o de governador do Banco de Portugal. No que se refere à captura pelas empresas, é no sector financeiro que as possibilidades aumentam, o que nos deve alertar para os riscos de uma nova crise financeira. Agora que se anuncia uma nova crise como consequência da pandemia de covid-19, importa, mais do que nunca, evitar a captura por parte de grandes interesses financeiros e económicos e salvaguardar o interesse público.
Politóloga, ICS-ULisboa