As férias judiciais como dano acrescido. A ignorância não mata
A bem do Povo, acabe-se com as “férias judiciais” mas mantenha-se a suspensão dos prazos judiciais, tal como actualmente se acha legislada, e os donos da opinião publicada e falada ficarão em paz, sem danos para a comunidade forense e judiciária.
A perplexidade que me assolou com a propalada danosidade das férias judiciais não tem limites. Desde professores de direito, a comentadores (um deles ex-advogado), a jornalistas, todos enfileiraram no anátema das férias judiciais, pois, além de injustificadas e imorais, significavam um privilégio injustificável para os magistrados e para os funcionários.
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A perplexidade que me assolou com a propalada danosidade das férias judiciais não tem limites. Desde professores de direito, a comentadores (um deles ex-advogado), a jornalistas, todos enfileiraram no anátema das férias judiciais, pois, além de injustificadas e imorais, significavam um privilégio injustificável para os magistrados e para os funcionários.
Ora, vamos lá esclarecer. Desde logo, os tribunais não têm férias. Estão em funcionamento de 15 de Julho até 30 de Agosto. Por outro lado, urge esclarecer que a regulamentação legal desta matéria é da competência exclusiva da Assembleia da República (pois acha-se formalmente inserida na Lei da Organização do Sistema Judiciário, Art. 28.º). De facto, quando leio e oiço que “o Governo recuou”, levo tal afirmação à guisa do injustificável desconhecimento da nossa Lei Fundamental (Art. 165.º, n.º 1, alínea p) da CRP).
Também ouvi um comentador das segundas-feiras a afirmar que as férias judiciais duram dois meses, quando, há muito, duram desde 15 de Julho até ao termo de Agosto. Mas, deixando de lado a ignorância, vamos tentar esclarecer.
No conceito de “férias judiciais” integram-se três realidades.
A primeira tem que ver com a suspensão dos prazos judiciais, ou seja, uma realidade que se dirige especialmente aos advogados que sofrem com a penosidade dos prazos peremptórios (ou seja, se o acto não for praticado dentro do prazo, o cidadão ou a empresa perdem a sua pretensão), o que não acontece com os magistrados, que beneficiam da natureza meramente indicativa dos prazos, ou seja, não sofrem qualquer sanção se não os cumprirem.
A segunda realidade prende-se com as férias de natureza laboral. De facto, magistrados e funcionários têm direito a gozar as chamadas férias grandes, de Verão. E eu lembro-me das consequências nefastas da iniciativa do primeiro Governo Sócrates, quando reduziu as férias para o mês de Agosto. Gerou-se, de facto, uma confusão generalizada, pois todos tinham de evitar sobreposição dessas férias laborais de molde a não provocar adiamentos sucessivos, face à circunstância da óbvia inadequação da presença do juiz e ausência do procurador, ou vice-versa, ou, nas pequenas comarcas, mesmo que juiz e procurador estivessem em funções, faltava o funcionário.
A terceira realidade tem que ver com a possibilidade do trabalho e com os actos que exigem presença física. Ora, como se sabe, mesmo durante as chamadas “férias judiciais” e, acima de tudo, fora desse período, os magistrados e os funcionários são possuidores, em suporte informático, de todos os processos (porque os advogados os forneceram) e podem, por consequência, exercer as suas funções a partir do seu domicílio.
Ora, sendo assim, a existência das chamadas “férias judicias” atinge exclusivamente os actos que exigem presença física, e mesmo estes podem ser praticados se, dum lado, se tratar de processos urgentes (arguidos detidos, providências cautelares, etc.).
Em suma, o que resta desta paralisia? A resposta é simples: nada. Mas não é tudo. Como disse, o mais – e quase exclusivo – relevo das chamadas “férias judiciais” atinge positivamente a advocacia, que podem suspender por magras duas ou três semanas a actividade dos seus escritórios, apesar de não terem nem vencimento garantido, nem férias pagas, nem subsídio de férias.
Será, pois, benéfico que se extingam formalmente as férias judiciais, mas que se consagre, então exclusivamente, a suspensão dos prazos judiciais. Nessa hipótese, beneficiava-se quem merece e carece de ser beneficiado e acabava-se com o “falso” privilégio dos magistrados e funcionários, o que não acarretaria mal algum, nem a eles nem à marcha dos processos que, mesmo sem férias, se arrastam penosamente nas secretarias e nos gabinetes dos magistrados.
Se tal acontecesse, alcançaríamos o melhor de dois mundos. Evitaríamos os comentários e as opiniões de conceituados professores universitários, de comentadores da segunda-feira, de jornalistas, todos pouco dados à leitura da Lei Fundamental que nem sequer se lembram de uma iniciativa legislativa de 2009 que, por via do Decreto-Lei, repôs a suspensão dos prazos a partir de 15 de Julho, corrigindo o erro evidente do primeiro Governo Sócrates, o que foi anatemizado com fundamento na violação da Constituição, pelos grandes pensadores da nossa praça.
A bem do Povo, acabe-se com as “férias judiciais” mas mantenha-se a suspensão dos prazos judiciais, tal como actualmente se acha legislada, e os donos da opinião publicada e falada ficarão em paz, sem danos para a comunidade forense e judiciária.