A voz de Amália guia-nos pela sua Lisboa num passeio de “amor genuíno”

Celebra-se o centenário do nascimento, marcam-se os 21 anos da morte. Pedro Vaz, guia e amaliano, criou um passeio musical por Lisboa que nos leva, passo a passo, pelas ruas e pela vida da fadista, da casa onde nasceu à casa onde morreu a 6 de Outubro de 1999.

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"Ó rua do Capelão / Juncada de rosmaninho / Se o meu amor vier cedinho / Eu beijo as pedras do chão / Que ele pisar no caminho" Daniel Rocha

“Quando eu era pequenina / acabada de nascer / ‘inda mal abria os olhos / já era para te ver”, canta Amália por esta rua na Pena, ali à Calçada de Santana, que a viu nascer por acaso há um século, numa troca dos pais do Fundão por Lisboa. A cantiga tradicional da Beira Baixa vai às costas de Pedro Vaz, o nosso guia-intérprete, que faz reviver a fadista num passeio musical, que criou de raiz e acabou de estrear, por caminhos da vida amaliana.

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“Quando eu era pequenina / acabada de nascer / ‘inda mal abria os olhos / já era para te ver”, canta Amália por esta rua na Pena, ali à Calçada de Santana, que a viu nascer por acaso há um século, numa troca dos pais do Fundão por Lisboa. A cantiga tradicional da Beira Baixa vai às costas de Pedro Vaz, o nosso guia-intérprete, que faz reviver a fadista num passeio musical, que criou de raiz e acabou de estrear, por caminhos da vida amaliana.

Quase conseguimos imaginar a pequenina Amália a saltitar por aqui, a cantarolar, a parar à frente da casa onde se diz que morreu Camões (como se escreve na fachada) e que está na calçada a meia dúzia de passos do Pátio Santos, na Rua Martim Vaz, onde ela nasceu (sem data exacta, mas com celebração por escolha a 1 de Julho, oficial a 23), num tempo em que Portugal se reerguia da tragédia de outra pandemia, a da chamada gripe espanhola. Da morte de Camões ao nascimento de Amália, que revolucionariamente o viria a cantar, são dois palmos, coisas da vida.

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Memórias de Amália, no dossier que acompanha a visita, aqui nas escadas da Igreja da Pena, vizinha da casa onde nasceu a fadista Daniel Rocha

Um século depois, é a “nossa” pandemia que está na origem deste passeio que tem tudo de amaliano. Pedro, como tantos, viu o seu trabalho de guia interrompido pelo vírus. Com 25 anos de carreira, sem turistas para guiar, foi aos seus amores buscar este projecto há muito “sonhado”. “Era um miúdo”, tinha 14 anos quando viu pela primeira vez Amália ao vivo no Coliseu em 1985. “Fui acompanhar a minha mãe e saí de lá fascinado”. Passou a seguir a artista, acabaria por conhecê-la pessoalmente e a fazer parte dos Amalianos, algo como um clube de fãs e amigos com direito a privar com a diva do fado, bater-lhe à porta e a participar em serões na sua casa.

O passeio que nos conduz por umas três horas pela Lisboa de Amália é também um passeio vivo pelas memórias de Pedro, que, para além dos fados, factos e lendas, inúmeros e sumarentos episódios, usa as suas recordações pessoais, entre fotografias, velhos bilhetes de concertos ou autógrafos pessoais e amorosos da artista, para dar ainda mais testemunho ao tour, que sobe e desce colinas até parar à frente da casa de Amália, onde ela morreu.

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Daniel Rocha

É por causa disto que o passeio, garante-se já, ultrapassa o mero tour à volta da vida de uma figura: é um passeio vivo feito por um guia profissional com muita Amália na sua vida. Mas, atenção, dir-nos-á Pedro, “não há aqui sede de protagonismo, nem oportunismo. “A protagonista é a Amália, só lhe dou voz”, afirma.

Os muitos caminhos de Amália

E é assim que seguimos Lisboa fora, neste dia com um calor de ananases, em que as roupas secam bem nos beirais, as frutas brilham às portas das lojas, as vizinhas falam à janela, e cá vamos de máscara como tantos, descendo à Mouraria, parando no Martim Moniz, com Pedro a ilustrar-nos como Amália passou de cantar nas ruas a bordadeira ou operária e vendedora de fruta, a ser descoberta e estrela das casas de fado, teatros (foi ali no Parque Mayer que se estreou na revista), cinemas, palcos, no mundo.

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Amália nasceu numa casinha do Pátio Santos, na rua Martim Vaz, antiga freguesia da Pena. Quando? No tempo das cerejas Daniel Rocha

Se no largo de São Domingos Pedro nos lembrará como era adorada por gentes de todas as culturas e religiões e nos dá a ouvir Insha'Allah, já antes, na histórica Rua do Capelão, entre tasca e peixaria e casa de fados, memórias da Severa e Fernando Maurício, com Amália pintada na parede em galeria de fadistas, dá-nos a ouvir, claro, “Ó Rua do Capelão / juncada de rosmaninho”. Para descansar as pernas, havemos de parar, já no Rossio, na clássica Tendinha, porque, claro, “Velha Tendinha / és o templo da pinguinha”. Sai uma ginjinha!

Daqui, poderíamos partir para muitos outros caminhos de Amália, que eles não faltam. Pedro diz-nos que poderá haver no futuro uma hipótese B, com ida óbvia a Alfama e ao Panteão, onde repousa Amália. Mas, sendo este um passeio demorado a pé, há que fazer opções e a rota segue para o Chiado (foi por aqui que se estreou profissionalmente no antigo Retiro da Severa), Largo Camões (para lembrar os poetas que trouxe ao fado) e Bairro Alto (do Luso à Adega Machado que tanto cantou) e Largo do Carmo (porque é bom não esquecer como Amália viveu três regimes e como foi “injustiçada”, sublinha Pedro, logo depois do 25 de Abril) – aqui, a voz de Amália parece ocupar todo o largo e vingar-se dos tempos com a sua versão de Grândola Vila Morena.

Além de Amália, claro, como diz Pedro, também a “Lisboa mais bonita” é estrela do passeio: o postal ilustrado da cidade vista do Jardim de São Pedro de Alcântara é obrigatório, entre uma marcha que aos nossos olhos parece voltar a cruzar a avenida, um “que fazes aí Lisboa, de olhos fincados no rio?” ou uma gaivota que cruza este “céu onde o olhar é uma asa que não voa”.

Esvoaçamos pela colina e a vida de Amália acompanha-nos até à porta da sua casa, onde morreu, aos 79 anos, a 6 de Outubro de 1999. ­A casa não integra o tour, mas entramos à mesma para rematar a visita e penetrar nestes espaços íntimos.

A rua é de São Bento, mas não engana: é ver aqui e ali outra toponímia que alguém pintou: Rua Amália. E que acharia a artista de andarmos nós, no Verão de 2020, a seguir-lhe os passos da vida? “Até me assusta um bocadinho pensar no que diria disto”, confessa Pedro, mas este é o seu fado: “Acho que se aperceberia que é um trabalho que sai do coração. A Amália sabe que é um amor genuíno.”

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Amália eterna, aqui na sua casa-museu na "rua Amália" Daniel Rocha