Wirecard: ministro alemão das Finanças soube das suspeitas em 2019
Relatório entregue ao Bundestag mostra que Berlim conhecia suspeitas em torno das contas da empresa que foi a estrela da bolsa alemã e faliu com dívidas de 4000 milhões.
Olaf Scholz, ministro das Finanças do Governo de Angela Merkel, soube há mais de um ano que havia suspeitas de manipulação de mercado por parte dos gestores da Wirecard, a empresa de pagamentos financeiros que abriu falência em Junho após uma ascensão meteórica, em especial desde 2018, na principal bolsa de valores da Alemanha.
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Olaf Scholz, ministro das Finanças do Governo de Angela Merkel, soube há mais de um ano que havia suspeitas de manipulação de mercado por parte dos gestores da Wirecard, a empresa de pagamentos financeiros que abriu falência em Junho após uma ascensão meteórica, em especial desde 2018, na principal bolsa de valores da Alemanha.
O conhecimento por parte do ministro é atestado por um relatório entregue na quinta-feira ao parlamento federal, em Berlim, e que tem a assinatura do regulador alemão que supervisiona banca, seguros e bolsa, a BaFin. De acordo com o diário Frankfurter Allgemeine Zeiting (FAZ), que noticiou em primeira mão o conteúdo desse relatório, Olaf Scholz tinha sido informado em Fevereiro de 2019 sobre as suspeitas que tinham levado aquela entidade reguladora a averiguar se havia ou não manipulação de mercado por parte da Wirecard.
Há quem classifique o caso o escândalo financeiro mais vergonhoso da Alemanha moderna após a II Guerra Mundial. A Wirecard era uma empresa tecnológica que funcionava como intermediária em serviços de pagamentos digitais, mas que também dispunha de licença bancária na Alemanha.
Cresceu, ao longo de quase duas décadas, de forma célere, conquistando o estatuto de estrela na bolsa de Frankfurt. Porém, suspeita-se que a equipa à frente da empresa empolava receitas e falsificou contas para se destacar no mercado e angariar investidores.
“É um escândalo sem paralelo no mundo da finança e tem de ser um alerta para nós”, disse ministro alemão das Finanças, no fim de Junho, quando a empresa se desmoronou.
Só que, como se sabe agora, o próprio governante, indicado pelo SPD para o executivo federal que assenta numa coligação com a CDU de Merkel, terá ficado calado durante mais de um ano, depois de saber das suspeitas, esquivando-se assim a eventuais críticas, que têm visado sobretudo os auditores e a própria BaFin, cujo presidente pediu desculpa depois da detenção do líder da Wirecard e do pedido de falência da empresa.
Um “silêncio perigoso"
Hans Michelbach, deputado da CSU (a “irmã bávara” da CDU), afirmou estar “extremamente zangado”. "Reter informações e atrasar informação ao Parlamento no caso Wirecard é inaceitável, e tem de ter um fim imediato”, reclamou Michelbach, depois de o relatório da BaFin, que aparentemente compromete o ministro das Finanças, ter sido entregue aos deputados com um dia de atraso em relação ao prazo prometido. “Tudo tem de ser posto em cima da mesa”, insistiu, citado pela Spiegel, que diz que o ministro optou por um “silêncio perigoso".
Para o FAZ, que revelou em primeira mão esse relatório comprometedor para Scholz, “este escândalo tem todos os ingredientes necessários para estragar as férias” ao ministro das Finanças. “A oposição está a pressioná-lo cada vez mais pedindo-lhe informações, incluindo agora até sobre a sua casa”, noticia este diário.
O que está em causa é o conteúdo da cronologia e do ponto de situação sobre a Wirecard, patente num documento analisado na quinta-feira pelos membros da comissão de Finanças do Bundestag. Diz o mesmo jornal que Scholz recebeu informações a 19 de Fevereiro de 2019 que indicavam que a BaFin tinha proibido a venda a descoberto de acções da Wirecard e tinha decidido abrir averiguações “em todas as direcções” para perceber se havia ou não manipulação de mercado.
Quatro meses depois, a 22 de Junho, Scholz foi novamente posto a par do que se estava a passar, incluindo o facto de a BaFin ter ordenado uma auditoria às contas para apurar possíveis irregularidades no balanço da empresa. Pelo meio, a 8 de Março, houve ainda um telefonema entre o presidente da entidade reguladora e o secretário de Estado das Finanças, em que terão sido trocadas informações sobre a Wirecard.
“Afinal, ainda há muitas questões em aberto no caso Wirecard, incluindo sobre o papel do ministério federal das Finanças”, concluiu Danyal Bayaz, deputado do partido Os Verdes, criticando Scholz por ter evitado o caso Wirecard no Parlamento.
Para Fabio de Masi, do partido Die Linke (A Esquerda), "o governo federal quis desviar a responsabilidade pela falha de supervisão apenas para os auditores”.
A Ernst & Young, que fiscalizava as contas da Wirecard desde 2009, é uma das entidades que, nesta altura, tem estado sob fogo por não ter descoberto e alertado para o facto de haver 2000 milhões de euros declarados no balanço como dinheiro em contas bancárias que, afinal, nunca terão existido.
Bruxelas também vai averiguar
A BaFin também está sob escrutínio na Alemanha e nas instâncias europeias. Na quinta-feira, a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA, na sigla em inglês) anunciou que iria rever a actuação do regulador alemão bem como da FREP, uma entidade privada responsável pela regulação contabilística na Alemanha.
O pedido de insolvência da Wirecard, a 25 de Junho de 2020, deixou dívidas de 4000 milhões entre credores. O fundador e antigo CEO, Markus Braun, de nacionalidade austríaca, tinha sido detido três dias antes, e foi depois libertado sob fiança, no dia 23. Pagou uma caução de cinco milhões de euros, para aguardar pelo desenrolar da investigação fora da prisão. Continua a ser o principal visado no inquérito criminal nas mãos da procuradoria de Munique, embora negue ter cometido qualquer crime.
O seu ex-número dois, Jan Marsalek, continua desaparecido. Havia registos de que teria entrado nas Filipinas logo após o colapso da Wirecard, mas após dias de aturada verificação, percebeu-se que foi um registo forjado. Marsalek nunca entrou naquele país, tendo documentos em seu nome sido usados por outra pessoa.
A empresa tinha ligações à Ásia, à América do Norte, à América do Sul e ao Médio Oriente. Marsalek foi o principal responsável pela expansão asiática do negócio. A Spiegel republicou mensagens de telemóvel alegadamente trocadas por Marsalek com um “conselheiro”. A primeira troca de mensagens data de 23 de Junho, quando Braun estava detido e a empresa caminhava a passos largos para a falência. A dada altura, Marsalek diz algo como “é mais fácil seres culpado quanto tens 1900 milhões...”.
A revista alemã diz ter verificado estas mensagens e deu-as como autênticas.