Hong Kong nas garras do Leviatã
O pior que fica deste exemplo é precisamente o pouco atrevimento do mundo em contestar os devaneios do Leviatã chinês, um sinal perigoso para que a besta mitológica se possa atrever a fazer novas investidas noutras paragens.
A transferência de soberania de Hong Kong (HK) do Reino Unido para a China foi oficializada em 1997, após um período colonial que durou 157 anos. O território tinha sido subtraído ao império chinês pelos britânicos em três fases distintas, decorrente das trágicas guerras do ópio do século XIX. Na essência, HK tornou-se um produto inglês, criado a partir de um “rochedo encharcado que não produz nada”, como escreveu James Clavell no livro Tai-Pan.
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A transferência de soberania de Hong Kong (HK) do Reino Unido para a China foi oficializada em 1997, após um período colonial que durou 157 anos. O território tinha sido subtraído ao império chinês pelos britânicos em três fases distintas, decorrente das trágicas guerras do ópio do século XIX. Na essência, HK tornou-se um produto inglês, criado a partir de um “rochedo encharcado que não produz nada”, como escreveu James Clavell no livro Tai-Pan.
O dinamismo do comércio marítimo inglês deu-lhe o ser, aumentaram os fluxos financeiros, desenvolveu-se um intenso comércio informal durante a Guerra Fria e tornou-se refúgio de dissidentes. Em 1984, um tratado sino-britânico acordou a devolução do “rochedo” à China, sob a garantia do princípio “um país, dois sistemas”. Este modelo salvaguardava a liberdade de expressão, uma justiça independente e a não imposição de um sistema comunista.
Importa dizer que HK nunca viveu sob um regime democrático, no sentido liberal e pluralista. De uma gestão colonial, de estilo vitoriano, com nomeação direta de um governador por Londres, passou para um modelo de nomeação de um chefe de executivo, gerido a partir de Pequim. Chris Patten, o último governador britânico, ainda tentou um processo de democratização de última hora, mas foi fortemente contestado e até insultado pela elite política chinesa. Desta forma, permanece uma democracia limitada, com supremacia de partidos e elites empresariais pró-chinesas, em que o chefe do executivo é escolhido por Pequim.
Apesar disso, em HK formou-se um habitat sociopolítico completamente diferenciado da China continental, marcada por uma ativa sociedade civil. Emergiram muitos grupos e movimentos sociais, formaram-se partidos políticos, abriram-se espaços de discussão livre e ativismo recorrente. Numa primeira fase, Pequim foi bastante tolerante com a região administrativa especial, proporcionando um “elevado grau de autonomia” como constitucionalmente estava garantido. Talvez querendo dar sinais positivos aos “compatriotas de Taiwan” para regressarem à “mãe pátria”. A criação de um sistema especial servia também os interesses das elites políticas chinesas, que ali possuía importantes ativos financeiros e por onde se escaparam muitos fluxos da era dourada da corrupção.
Com a chegada de Xi Jinping ao poder, envolto numa nova galvanização nacionalista e de obsessão com a unidade nacional, o espaço dado às liberdades individuais vai reduzir-se substancialmente em HK. O poderoso Estado chinês comporta-se como o Leviatã, o grande monstro marinho bíblico que inspirou Thomas Hobbes (século XVII). Esta criatura, “que nem a lança, a espada ou o dardo” conseguem derrubar, como aparece descrito no livro sagrado, é para Hobbes o menos mau de todos os males. Para ele, a tirania é sempre preferível à desordem e à guerra. O Leviatã de Hobbes não deixa de proteger os homens, mas deixa-os “nus e desarmados perante a evidência do poder”. Assim acontece com a poderosa gestão do Estado chinês, cada vez mais indisposto com o princípio “um país, dois sistemas”, que já não parece querer respeitar.
Aos poucos foi desenvolvendo um processo de “sinificação” do território, apoiando migrações de continentais, tentado controlar a imprensa, encerrando livrarias, alterando manuais escolares, aplicando leis contrárias à Lei Básica, por exemplo a lei de extradição, ente muitas outras manifestações de centralismo político. Não é exagerado dizer que a “alma” de HK desaparece paulatinamente. O próprio ambicioso projeto económico da Grande Baía, que junta Macau, Hong Kong e Cantão (Guandong), parece ser uma forma de diluir o território de HK na China continental.
Este tem sido o mote principal da saída para as ruas de milhares de jovens, descontentes com a progressiva tentativa de aniquilamento da identidade política do território, reclamando a salvaguarda das liberdades prometidas. O último capítulo deste processo é a desproporcionada nova lei de segurança nacional, que mais não é que uma nova demonstração de força do poder central. Aos poucos, instala-se um clima de medo, marcado por uma vaga de perseguições e detenções, o ingrediente necessário para “moldar as vontades de todos”, como escreveu Hobbes. Ativistas como Joshua Wong são agora tratados como terroristas, correm o risco de lhes serem aplicadas penas de prisão perpétuas.
O mundo vai reagindo com lentidão a este novo clima de tensão, muitos parecem não querer ver e outros embrulham-se em discursos paradoxais. O pior que fica deste exemplo é precisamente o pouco atrevimento do mundo em contestar os devaneios do Leviatã chinês, um sinal perigoso para que a besta mitológica se possa atrever a fazer novas investidas noutras paragens.
Nota: O texto vincula apenas a opinião do autor
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico