Eles levaram o comércio local para a Internet e daí para a casa dos vizinhos
Nos tempos do confinamento, muitos viraram-se para o comércio local. Para fazer a ponte entre lojas e clientes, assim como tratar das entregas, um grupo de voluntários criou uma plataforma online que começou pelas ruas de Campo de Ourique, cresceu e agora aspira ir mais longe.
Fernando Amaral aparece de mochila e capacete de mota no mercado de Campo de Ourique. Ex-director de marketing da start-up Unbabel, foi um dos mais de 80 trabalhadores despedidos da multinacional no início da pandemia de covid-19. Perante a nova realidade, não se ficou e, ainda em Março, fundou a Comerciantes.pt, uma plataforma comercial online inédita composta, apenas por voluntários, e que serve de montra a vários pequenos negócios e comerciantes de bairro, encarregando-se também das entregas com uma particularidade única: a mesma encomenda pode ter produtos de diferentes lojas. A adesão cresceu, as sinergias também e já há quem lhes peça que entrem noutros bairros. O comércio local agradece.
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Fernando Amaral aparece de mochila e capacete de mota no mercado de Campo de Ourique. Ex-director de marketing da start-up Unbabel, foi um dos mais de 80 trabalhadores despedidos da multinacional no início da pandemia de covid-19. Perante a nova realidade, não se ficou e, ainda em Março, fundou a Comerciantes.pt, uma plataforma comercial online inédita composta, apenas por voluntários, e que serve de montra a vários pequenos negócios e comerciantes de bairro, encarregando-se também das entregas com uma particularidade única: a mesma encomenda pode ter produtos de diferentes lojas. A adesão cresceu, as sinergias também e já há quem lhes peça que entrem noutros bairros. O comércio local agradece.
A ideia nasceu de uma necessidade real. No auge da pandemia de covid-19, tanto os comerciantes de bairro como os seus clientes lidavam com uma situação incerta, que não sabiam quanto tempo duraria. Já havia listas com contactos telefónicos de alguns comerciantes que se disponibilizavam para entregas, mas nenhum serviço que possibilitasse a compra directa de vários produtos de negócios diversos. Durante o período de confinamento, mesmo em super e hipermercados como o Continente ou o Auchan, as pessoas não conseguiam fazer compras. “A minha mãe dizia-me que estava horas a fazer refresh no site e que, quando conseguia comprar, a entrega era para um mês depois”, explica. Em muitos casos, ir fisicamente aos supermercados também não era possível.
Inicialmente eram os comerciantes quem “garantia as entregas, porque já estavam a fazer isso. Mesmo que fosse só aos vizinhos ou aos clientes habituais, era a única maneira de venderem”. Assim, quando começou, a função da plataforma era “dar-lhes a montra”, conta. Com o tempo, ele próprio começou a tratar desta parte, entregando os pedidos por Lisboa enquanto os clientes pagavam online directamente aos lojistas. Uma encomenda típica pode incluir da fruta ao sabonete, passando por conservas e peixe fresco. Tudo comprado em sítios diferentes
Os comerciantes aplaudem. Aurora de Brito tem a banca mais antiga do mercado de Campo de Ourique: “já vendo aqui há 68 anos”, segundo a própria. Aderiu no mês de Junho, e sente-se satisfeita com o impacto que teve no negócio. “Uma senhora passou aqui uma vez com o marido e disse-me ‘Compro a sua frutinha'” na plataforma, conta.
Joana Lourenço, dona da Erva d’Ouro, onde vende sobretudo azeite mas também vinhos e queijos, juntou-se à plataforma há um mês, permitindo que os clientes consigam, assim, obter cada vez mais produtos locais, que “normalmente até são de melhor qualidade”, diz a lojista. Além disso, acrescenta que a comunicação “é bastante facilitada”, “sente-se uma sinergia”, entre os comerciantes do mercado, os clientes e a plataforma.
Lojas fechadas, outras com mais vendas
Segundo Amaral, numa primeira aproximação, depararam-se com alguns negócios em dificuldade. “No início, tínhamos muitas lojas para visitar que tínhamos descoberto na Internet. Quando chegávamos lá, tinham fechado.” Mas a maior parte dos negócios que encerraram dependiam mais do turismo, que sofreu grandes quebras desde o início da pandemia de covid-19. Contudo, os comerciantes que serviam mais a população do bairro não sofreram as mesmas repercussões, conta. “Alguns até aumentaram as vendas. Como as pessoas não podiam ir ao supermercado, usavam mais este comércio.”
Tendo por base o consumo mais sustentável, bem como uma tentativa de responder a uma situação difícil, a Comerciantes.pt foi fundada por Amaral e Julie Belião, PhD em Data Science. Foi lançada em apenas 15 dias, com recurso a plataformas de comércio digital já existentes, como a Shopify. Contaram com uma equipa de colaboradores, como designers ou produtores de conteúdos. “Juntámos ali muitas competências diferentes para criarmos uma plataforma funcional, com base em ferramentas já existentes”, relata Amaral. A maioria conhecia-se da Unbabel ou de outras empresas. No início da pandemia, “estava toda a gente a trabalhar de casa, muitos em layoff e alguns perderam o emprego. Surgiu a oportunidade de fazer alguma coisa, na altura completamente voluntário”.
O projecto começou no bairro lisboeta de Campo de Ourique, pela sua diversidade de comércio local e relativa facilidade de acesso nas entregas. A princípio, eram os próprios criadores quem falava com os comerciantes. “Com o início do desconfinamento, começámos a poder visitar os comerciantes e o processo tornou-se muito mais fácil.”
Amaral indica que a taxa de conversão dos comerciantes à plataforma tem sido elevada. Actualmente, a Comerciantes.pt conta com 20 negócios diferentes, a maior parte situada no mercado de Campo de Ourique. O projecto é ambicioso: no futuro, pretendem “poder substituir as compras num supermercado por compras com comerciantes [locais]”.
“A ideia é provar que se formos a um bairro e conseguirmos que metade dos comerciantes adira, conseguimos fazer isso nos outros todos”, defende. Contudo, o crescimento do projecto implica também mais recursos e investimento, uma escalada que não pode “continuar neste regime de voluntariado”. Segundo o criador, já há pedidos de comerciantes fora de Lisboa para aderirem. Por enquanto, ainda não é possível dar esse salto mas os passos estão a ser dados. De bairro em bairro, querem provar que é possível ligar os clientes ao comércio local.
Texto editado por Ana Fernandes