O carro é uma arma? Morte de jovem inflama ânimos sobre como dominar os automóveis nas cidades
Há muito que o carro tem a hegemonia da mobilidade nas cidades portuguesas. Nos últimos anos, esse poder começou a ser contestado e em tempos de pandemia ainda mais. Mas como o fazer?
Uma jovem morreu atropelada na sexta-feira passada no Campo Grande, em Lisboa. O acidente inflamou as redes sociais e já levou ao agendamento de protestos junto ao edifício da Câmara Municipal de Lisboa nesta quinta-feira às 19h. Apelam ao “fim das vias rápidas dentro de Lisboa” ou de “vias que convidam à velocidade dentro da cidade”. Embora o movimento esteja a ser liderado por adeptos da bicicleta, o debate não se reduz à coexistência entre ciclistas e automobilistas mas sim entre todos os que usam e habitam a cidade, referem alguns organizadores.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Uma jovem morreu atropelada na sexta-feira passada no Campo Grande, em Lisboa. O acidente inflamou as redes sociais e já levou ao agendamento de protestos junto ao edifício da Câmara Municipal de Lisboa nesta quinta-feira às 19h. Apelam ao “fim das vias rápidas dentro de Lisboa” ou de “vias que convidam à velocidade dentro da cidade”. Embora o movimento esteja a ser liderado por adeptos da bicicleta, o debate não se reduz à coexistência entre ciclistas e automobilistas mas sim entre todos os que usam e habitam a cidade, referem alguns organizadores.
Questões como a redução da velocidade nas cidades e a coexistência de carros, peões e modos de mobilidade suaves (como as bicicletas) têm estado na ordem do dia. Mas não há respostas únicas. Segundo Mário Alves, especialista em mobilidade urbana, o problema não se circunscreve às ciclovias nem se resolve pelo mero encorajamento ao uso da bicicleta. Acima de tudo, “é necessário desencorajar o uso do carro”, o que “não é bem a mesma coisa que encorajar o uso da bicicleta”, frisa.
Alves considera crucial a acalmia das velocidades nas avenidas e nos bairros, o “que já se verifica em muitas cidades europeias” e nalgumas ruas de Lisboa. “Quando andamos de carro, temos uma arma. Numa colisão a 30km/h, quase todos os peões sobrevivem, apenas 10% é que não. A situação é completamente diferente a 50km/h ou mais, em que a maior parte dos peões não sobrevive”, sublinha.
Sabendo-se que as cidades portuguesas são demasiado rodoviárias, é urgente implementar medidas holísticas que façam mais do que um simples apelo à utilização da bicicleta e que sejam capazes de solucionar a primazia do automóvel. As sugestões são variadas, passando por zonas em que os carros só possam circular a 30km/h até implementação de mais radares dentro das cidades. Alves sublinha que este debate já existe há anos mas a situação actual continua a deixar muito a desejar.
Por sua vez, Fernando Nunes da Silva é céptico em relação à forma como estão a ser implementadas as ciclovias. O ex-vereador da câmara de Lisboa com o pelouro da Mobilidade e professor catedrático no Instituto Superior Técnico critica a forma como este debate tem sido “desviado das questões essenciais, numa guerra ideológica entre as associações de bicicletas e os outros”.
Para este engenheiro, é fundamental “uma moderação da situação automóvel”. A solução implicaria uma reforma profunda. O objectivo? “Criar sinergias entre espaços urbanos, estradas, espaços verdes”, diz. Mas afastarmo-nos do paradigma do automóvel requer um novo desenho da cidade que, em vez de se limitar a construir ciclovias, deve pensar as diferentes formas de mobilidade e como estas podem coexistir de forma segura, arrefecendo o actual clima de conflito entre os defensores dos diferentes meios de locomoção. Acusa a autarquia de Lisboa de tratar o problema de forma superficial, exemplificando com as ciclovias na Avenida Almirante Reis. A curto prazo “pode ser interessante, mas não resolve o problema. Pelo contrário, pode criar situações de rejeição”.
Se o problema é estrutural, a solução também deve ser. Esta é a visão de Rosa Félix, investigadora de mobilidade ciclável do Instituto Superior Técnico. Inicia-se com o ensino de condução de bicicleta, que pode ser feito ao nível “não só da escola primária, mas também secundária, quando os alunos já têm alguma independência”. Depois há a necessidade de uma infra-estrutura que minimize riscos uma vez que “uma pessoa não vai andar de bicicleta nem vai deixar os seus filhos andar se não se sentir segura”. Félix insiste que isto passa pelas ciclovias e não apenas por zonas de mobilidade em que os carros possam circular com os ciclistas a 30km/h. Estas zonas eram uma tendência entre vários especialistas e activistas europeus nos anos 90 mas que já não é muito seguida actualmente, aponta. Assim, frisa que é necessária uma rede ciclável segura mas que também seja contínua e que chegue ao destino das viagens dos cidadãos.
O desenvolvimento das infra-estruturas diz respeito a muito mais do que a estrada. Exemplifica: “Muita gente diz que até gostava de ter uma bicicleta mas não tem onde a pôr. É preciso que existam locais para guardá-las durante a noite. Já existem alguns pontos de estacionamento para bicicletas na capital mas a maioria não são em zonas residenciais, onde são cruciais para protecção nocturna”. Assim, segundo a investigadora, não é apenas a ciclovia que resolve o problema mas sim a criação de soluções para problemas sistémicos.
Texto editado por Ana Fernandes