Contra a higienização académica do racismo e fascismo do Chega
Enquanto investigadoras e investigadores, defendemos que a produção de conhecimento académico não se coaduna com propósitos de normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e com desígnios antidemocráticos.
No dia seguinte à (contra)manifestação “Portugal Não é Racista”, Riccardo Marchi – professor e investigador do ISCTE-IUL – apresentou, na RTP 2, o seu livro sobre o partido Chega. Nessa entrevista, defende que este partido e André Ventura não são racistas nem de extrema-direita. Os argumentos analíticos mobilizados, assim como os deixados na sombra, em horário nobre na televisão pública e sem contraditório, obrigam-nos a tomar uma posição de repúdio face aquilo que é, claramente, uma normalização e branqueamento da face antidemocrática e racista daquela força política, sob chancela científica. Esta não é uma crítica pessoal. Sabemos que este tipo de posições inscreve-se nas continuidades históricas e estruturais antidemocráticas e coloniais.
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No dia seguinte à (contra)manifestação “Portugal Não é Racista”, Riccardo Marchi – professor e investigador do ISCTE-IUL – apresentou, na RTP 2, o seu livro sobre o partido Chega. Nessa entrevista, defende que este partido e André Ventura não são racistas nem de extrema-direita. Os argumentos analíticos mobilizados, assim como os deixados na sombra, em horário nobre na televisão pública e sem contraditório, obrigam-nos a tomar uma posição de repúdio face aquilo que é, claramente, uma normalização e branqueamento da face antidemocrática e racista daquela força política, sob chancela científica. Esta não é uma crítica pessoal. Sabemos que este tipo de posições inscreve-se nas continuidades históricas e estruturais antidemocráticas e coloniais.
1. A categorização política proposta tem o condão de higienizar a imagem do Chega e de André Ventura, desenhando um argumentário ideal para um partido que conquistou o espaço mediático e eleitorado à custa de um discurso racista e antidemocrático. Ventura não gosta que o Chega seja denominado de “extrema-direita”, preferindo a designação “partido antissistema” e Marchi concorda. Afirma que o Chega não é um partido de extrema-direita, mas sim de uma “nova direita” “radical” de “protesto” e “antissistema” que se distancia da “velha” extrema-direita – que o Chega não tem heranças fascistas. Parece-nos uma enorme e forçada ingenuidade não ler os compromissos explícitos à luz dos compromissos implícitos, assim como maximalizar e encapsular a extrema-direita num ideal-tipo, impossível de replicar para além de Hitler e Mussolini. Tudo o resto seriam apenas elementos interessantes do jogo político.
A promiscuidade com o Movimento Zero, a utilização de milhares de perfis falsos nas redes sociais, as propostas de castração química, prisão perpétua, trabalho forçado para reclusos, confinamento de comunidades racializadas, extinção dos serviços públicos que visam garantir a universalidade de direitos como a Educação e Saúde, e até mesmo a proposta de uma IV República, são apresentadas como se fossem apenas medidas de reforma profunda, que não violam as regras do jogo democrático tal como as temos estabelecidas constitucionalmente. Além do mais, a recente filiação do Chega no grupo europeu Identidade e Democracia (ID), que integra partidos como a Liga do Norte de Matteo Salvini e a União Nacional de Marine Le Pen, os laços que está a construir com Trump e com a família Bolsonaro ou o antigo flirt com o Vox não merecem comentários na RTP2.
2. Nessa mesma entrevista, é ainda referido que “André Ventura e o Chega não consideram as minorias étnicas – ciganos e afrodescendentes – como corpos estranhos ao tecido nacional que deveriam ser expulsos (...). Muito pelo contrário, a ideia deles é a integração, através da assimilação o mais possível, destas minorias (...). Deste ponto de vista, é impossível, diria eu, considerar o Chega como um partido xenófobo ou racista”. Este argumentário não só enaltece a ideia de “integração pela assimilação”, como reduz o racismo a casos de expulsão, ocultando as suas dimensões estruturais, institucionais e quotidianas. Afinal de contas, não se pretende expulsar ninguém, exceto a deputada Joacine Katar Moreira que, segundo André Ventura, deveria ser “devolvida” à sua terra. Tudo o que configura racismo no Chega, afinal não o é: ora é porque o Tribunal Constitucional permitiu a sua inscrição no sistema político (logo, se permitiu é porque não seria racista ou xenófobo); ou porque propor o confinamento das comunidades ciganas, generalizando um pretenso problema com algumas pessoas de uma localidade específica para toda a comunidade, nada teria de racista. Tratar-se-ia, diz-nos, apenas de uma “estratégia de comunicação” dentro das regras da “política espetáculo” que André Ventura tão bem domina (qual abalroamento do Artigo 13.º da nossa Constituição). Mais adiante diz que dois dos dirigentes do Chega com passado recente no PNR não têm orientações de extrema-direita, já que a sua afiliação ao PNR foi transitória, e que os mesmos seriam ideologicamente melhor enquadrados no PSD.
Mas o que se escolheu não dizer na RTP 2 é tão ou mais importante do que o que disse. Não se referiu que há evidência de ligações do Chega a grupos de extrema-direita e neonazis portugueses, como a Nova Ordem Social (NOS, liderado por Mário Machado), Escudo Identitário, Associação Portugueses Primeiro (que tem na cúpula João Martins, condenado no processo relativo ao assassinato de Alcindo Monteiro) ou que o cabeça de lista do Chega, no Porto, às legislativas foi condenado pelo assassinato de uma criança cigana enquanto agente de autoridade. Dias antes da (contra)manifestação do Chega, o ex-líder da NOS apelou nas redes sociais para que não fossem feitas saudações nazis (o que já acontecera num encontro do Chega no Porto).
Enquanto investigadoras e investigadores, defendemos que a produção de conhecimento académico não se coaduna com propósitos de normalização, legitimação e branqueamento de um partido racista e com desígnios antidemocráticos. Os métodos científicos remetem para apropriações críticas, não devem servir para disfarçar o viés político sob uma suposta neutralidade científica. Ver para além das fachadas, relacionar, cotejar o que é dito com o que é feito, encontrar contradições, desocultar – eis os desafios de um trabalho científico exigente e consciente da sua responsabilidade na construção de sociedades mais justas e igualitárias.
Subscritores/as
Adriano Campos, Sociólogo, FEUC-UC; Alice Ramos, Socióloga; Ambra Formenti, Investigadora; Ana Alcântara, Historiadora, ESE-IPS e IHC-FCSH; Ana Benavente, Socióloga, Docente; Ana Delicado, Investigadora; Ana Ferreira, Investigadora, FCSH-UNL; Ana Raquel Matias, Socióloga; Ana Rita Alves, Doutoranda, CES-UC; André Barata, Filósofo, UBI; Boaventura de Sousa Santos, Director Emérito do CES-UC; Bruno de Sena Martins, Antropólogo; Cláudia Castelo, Historiadora; Cristiana Bastos, Antropóloga; Cristina Gomes da Silva, Socióloga, Professora do Ensino Superior; Cristina Roldão, Socióloga, ESE-IPS e ISCTE-IUL; Cristina Santinho, Antropóloga, investigadora e docente universitária; Eduardo Costa Dias, Professor Jubilado, ISCTE-IUL; Elsa Pegado, Socióloga, investigadora e docente, CIES-ISCTE; Fátima Sá, Historiadora, ISCTE-IUL; Fernando Rosas, Historiador, FCSH-UNL; Francesco Vacchiano, Investigador associado, ICS-UL; Gaia Giuliani, Investigadora; Inês Lourenço, Investigadora, CRIA/ISCTE-IUL; Inês Pereira, FCSH-UNL, ISCTE-IUL; Inocência Mata, Professora universitária, FLUL; Iolanda Évora, Investigadora e docente; Irene Pimentel, Historiadora, IHC, FCSH-UNL; Joana Lucas, Antropóloga; João Figueiredo, Investigador, UNL; João Mourato, Investigador Auxiliar, ICS-UL; João Teixeira Lopes, Sociólogo, FLUP; João Vasconcelos, Investigador; Jorge Vala, Investigador Emérito, ICS-UL; Kitty Furtado, Investigadora, CES-UC; Lígia Ferro, Professora Auxiliar, FLUP; Manuel Carlos Silva, Professor universitário; Manuel Loff, Historiador; Manuela Ribeira Sanches, Docente universitária; Margarida Paredes, Antropóloga; Maria José Casa-Nova, Universidade do Minho; Maria Paula Meneses, Investigadora, CES-UC; Mariana Pires de Miranda, Investigadora Auxiliar, ICS-ULisboa; Marta Araújo, Investigadora em Ciências Sociais; Marta Lança, IHA, FCSH-UNL; Miguel Cardina, Historiador, CES-UC; Miguel Vale de Almeida, Antropólogo; Nuno Dias, Sociólogo; Otávio Raposo, Antropólogo, CIES-ISCTE; Paula Godinho, Antropóloga; Pedro Abrantes, Professor universitário; Pedro Schacht Pereira, Professor universitário; Pedro Varela, Doutorando, CES-UC; Raquel Lima, Doutoranda, CES-UC; Renato Carmo, Professor universitário; Rita Cachado, Antropóloga; Rui Gomes Coelho, Arqueólogo; Sandra Mateus, Investigadora, CIES-ISCTE; Silvia Maeso, Socióloga; Sílvia Roque, Investigadora; Simone Amorim, Investigadora, CEsA/ISEG/UL; Simone Frangella, Antropóloga; Simone Tulumello, Geógrafo; Susana Santos, Investigadora, ISCTE-IUL; Teresa Seabra Almeida, Docente universitária; Teresa Fradique, Cientista social; Vitor Sérgio Ferreira, Sociólogo, investigador auxiliar
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico