As voltas do Soajo e da Peneda, ou a construção da memória

O leitor Carlos Gouveia da Silva partilha a sua experiência pelo Gerês.

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Aproveitando as agradáveis temperaturas que têm acompanhado estes tempos de desconfinamento, após vários meses de isolamento social, dediquei um destes dias a mostrar à minha descendência alguns do lugares mágicos que preencheram o imaginário da minha adolescência e que tive o privilégio de conhecer na minha juventude. A ideia proposta era simples: sair de casa manhã cedo, passar por Ponte da Barca, almoçar algures na entrada do Parque Nacional da Peneda-Gerês e visitar depois as aldeias e os núcleos comunitários de espigueiros do Soajo e do Lindoso.

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Aproveitando as agradáveis temperaturas que têm acompanhado estes tempos de desconfinamento, após vários meses de isolamento social, dediquei um destes dias a mostrar à minha descendência alguns do lugares mágicos que preencheram o imaginário da minha adolescência e que tive o privilégio de conhecer na minha juventude. A ideia proposta era simples: sair de casa manhã cedo, passar por Ponte da Barca, almoçar algures na entrada do Parque Nacional da Peneda-Gerês e visitar depois as aldeias e os núcleos comunitários de espigueiros do Soajo e do Lindoso.

De início começámos por cumprir o programa. Paragem em Ponte da Barca para ver a terra com olhos de caminhante, passear junto das águas frescas do Lima e tomar um café numa esplanada (os doces de romaria comprados minutos antes na feira acompanharam na perfeição). Seguimos para os Arcos de Valdevez e subimos na direcção do Parque Nacional. Subir é o termo certo, pois, desde que atravessámos a ponte sobre o rio Vez até ao Mezio, a altitude foi sempre a aumentar, o que nos foi proporcionando o alargar das vistas para norte e noroeste, deixando adivinhar lá bem para cima, no sentido contrário daquele para onde nos deslocávamos, as terras de Paredes de Coura.

No Mezio parámos e, depois de a Sofia, minha filha, se deliciar durante uns bons minutos a fotografar uma manada de garranos semi-selvagens, de entre os tantos que deambulam por aquele território, montámos a tenda e piquenicámos mesmo junto das Portas do parque. Surpreendentemente ou talvez não, começámos a aperceber-nos que não havíamos sido os únicos a pensar usufruir o dia em plena natureza. Ainda era cedo, mas a área estava bem preenchida com famílias e grupos de viajantes, sobretudo na zona de merendas reservada do parque, apesar da entrada paga. No final, demos uma espreitadela na anta do Mezio  para reviver a fotografia que há quase três décadas fizera à minha mulher e que ainda descansa num passe-partout lá de casa  e noutros milenares monumentos megalíticos escavados há um bom par de anos.

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Garranos no Mezio

No Soajo gostava de ter proporcionado à minha filha a sensação que vivi no início dos anos 1990 quando, depois de virar à esquerda na estrada municipal, me surgiu de frente o núcleo de espigueiros que tanto ansiava conhecer. O impacto que certos monumentos ou lugares produzem em nós depende em grande medida da expectativa que em torno deles criamos e daquilo que imaginamos ser a sensação que nos proporcionarão no momento em que a vida permitir que nos cruzemos com eles. Durante anos sonhei com este lugar quase mítico – como com Castro Laboreiro, Vilarinho das Furnas, Lindoso, Peneda, Gerês… , para mim tão afastado em distância real e relativa, num tempo em que quase tudo ficava demasiado longe e uma viagem de carro demorava horas e, mais que um prazer, era uma tortura.

Ao contrário do que tantas vezes sucede, a primeira visita ao Soajo correspondeu completamente ao que eu esperava e a imagem do bilhete-postal, mágica e misteriosa, adensada pelo céu cinzento e chuvoso que então me recebeu, estava lá por inteiro. Desta vez as coisas foram bem diferentes. O dia estava limpo e o céu azul, mas a enchente logo à chegada arrumou com qualquer tipo de mistério e de possibilidade de encontro imediato. Fizemos marcha-atrás, entrámos pela aldeia, visitámos o largo do pelourinho, circulámos pelas vielas graníticas e só depois subimos ao núcleo comunitário, implantado sobre um considerável afloramento rochoso. O lugar é o mesmo, os 24 espigueiros de pedra mantêm-se inalterados, mas a magia do conjunto perdeu-se na multidão e na voragem das selfies.

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A imponência da serra, com o Lima ao fundo

Enquanto tomávamos café numa esplanada à entrada do povoado, partilhei o que me ia na alma: em vez de descer ao Lindoso, apetecia-me fugir da agitação, virar para norte e meter-me pela serra acima.

A proposta foi aprovada e, verdade seja dita, melhor não podíamos ter feito. Já por mais de uma vez fizemos este percurso, mas cada viagem por esta serra é uma descoberta, uma experiência única, um permanente escancarar a boca e os olhos de espanto, sobretudo quando chegamos ao miradouro de Tibo e a paisagem se abre diante de nós de forma imponente e esmagadora. Daqui para a frente a sequência é a já conhecida de cor e salteado, desde o tempo em que por estas paragens andei, de mochila às costas, nas voltas do ensino: Tibo, Rouças, Gavieira, São Bento do Cando, cruzamento do Batateiro (com a Branda da Bouça dos Homens mesmo ao lado) e Branda de Santo António de Vale do Poldros.

Para a minha filha, estas terras altas da Peneda não eram novidade, uma vez que não há muito aqui estivemos durante alguns dias, com malas assentes em Castro Laboreiro. Mas como recordar e ver com novos olhos nunca é de mais, resolvemos ir parando. Em São Bento do Cando, Arcos de Valdevez, demos uma volta a pé pelo lugar, umas dezenas de habitações distribuídas em torno da capela dedicada ao santo de Núrsia. Em Santo António de Vale de Poldros, Monção, já com o sol a despedir-se no horizonte, percorremos a branda de pastoreio, as cardenhas de falsa cúpula, o largo do cruzeiro e pudemos constatar as mais que evidentes diferenças relativamente ao que me foi dado a conhecer noutras épocas, com algumas construções vernaculares desaparecidas, outras em adiantado estado de degradação e diversas casas entretanto levantadas aqui e além.

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Cruzamento do Batateiro, Melgaço. À procura de um enquadramento perdido na memória

Já alguém lhe chamou a aldeia do Hobbit. Não sei se devemos derivar para essas considerações, mas sei que núcleos associados à transumância como este não devem abundar no nosso país e merecem, por isso, ser preservados a todo o custo, como memória de um ritual fundamental para a sobrevivência das comunidades serranas que o tempo de todo já apagou. No cruzamento do Batateiro, Melgaço, a Sofia tentou repetir a primeira fotografia que fizera, há seis anos, com a sua Canon, frente ao estradão ladeado de árvores que segue para poente. Provavelmente não encontrou o mesmo ângulo, mas valeu a pena parar e recordar uma vez mais Setembro de 2000 – numa altura em que ainda dava os primeiros passos  e o iogurte que a avó lhe deu, colher a colher, sentada em cima de uma mala térmica, mesmo ao lado do monumento megalítico situado umas centenas de metros adiante.

Depois de fazer o caminho inverso e de absorver novamente os ares e os quadros naturais da serra, acabámos o dia a calcorrear as fragas do Lindoso, já em Ponte da Barca, por entre espigueiros e muralhas medievais, e a saborear o que ainda restava da merenda, numa eira à entrada da aldeia e com os candeeiros públicos a servirem de archote.

Costumo dizer que, mais importante que dar aos filhos valores materiais ou qualquer tipo de “tralha”, é dar-lhes mundo. Mundo, conhecimentos e experiência de vida. E quem diz mundo diz também a diversidade que estrutura o nosso país e nos enriquece enquanto cidadãos conscientes e orgulhosos do que nos identifica. A viagem de hoje foi, de acordo com os princípios pelos quais oriento a minha vida, um precioso contributo nesse sentido.

Poucos são os dias que, depois de vividos, nos deixam com uma sensação de plenitude. Não sei se a Sofia a sentiu dentro de si, mas sei que quando, à noite, já deitado na cama, fechei os olhos, ainda viajava pela serra, por entre florestas, fragas e garranos, feliz e seguro de ter revisitado pedaços da minha história de vida e de ter ajudado a minha filha a construir fragmentos da sua memória futura. Quem disse que não devemos voltar aos lugares onde fomos felizes?

Carlos Gouveia da Silva