O fim da paz podre ideológica da globalização
A acalmia ideológica instalada desde os anos 1990 — na realidade, mais uma paz podre ideológica, pelas razões apontadas —, a qual parecia trazer consigo harmonia social, progresso e de bem-estar económico, está a desintegrar-se.
1. Um dos grandes entraves à compreensão do mundo de hoje é que este é demasiadas vezes visto e interpretado por lentes que nos parecem boas, mas, de facto, distorcem-no. Em 1989 o final da Guerra Fria — que abriu caminho à globalização, tal como a conhecemos hoje —, foi amplamente visto como o término da profunda disputa ideológica que marcou o século XX, entre o socialismo-comunista soviético e as democracias-capitalistas liberais ocidentais. Estas últimas, sob liderança dos EUA, teriam triunfado em toda a linha, tornando obsoleta a luta ideológica e relegando, para os confins do passado, a tradicional divisão entre esquerda e direita. Um pensamento ideológico-político único tinha-se instalado: era capitalista-liberal (e/ou neo-liberal), no campo da economia; e era democrático-liberal (e pluralista) no campo da política. Hoje são muito evidentes as distorções provocadas por tal visão simplista.
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1. Um dos grandes entraves à compreensão do mundo de hoje é que este é demasiadas vezes visto e interpretado por lentes que nos parecem boas, mas, de facto, distorcem-no. Em 1989 o final da Guerra Fria — que abriu caminho à globalização, tal como a conhecemos hoje —, foi amplamente visto como o término da profunda disputa ideológica que marcou o século XX, entre o socialismo-comunista soviético e as democracias-capitalistas liberais ocidentais. Estas últimas, sob liderança dos EUA, teriam triunfado em toda a linha, tornando obsoleta a luta ideológica e relegando, para os confins do passado, a tradicional divisão entre esquerda e direita. Um pensamento ideológico-político único tinha-se instalado: era capitalista-liberal (e/ou neo-liberal), no campo da economia; e era democrático-liberal (e pluralista) no campo da política. Hoje são muito evidentes as distorções provocadas por tal visão simplista.
É agora demasiado óbvio que o caso da China foi subestimado, em particular a capacidade de prossecução de um controlo efectivo (e autoritário) do Partido Comunista Chinês sobre o Estado, a sociedade e a economia, apesar de uma certa abertura ao mercado. Não foi também percebida a força de ideologias não ocidentais, desde logo do islamismo radical, que é simultaneamente religioso-político e recusa a separação, vista como um artifício abominável dos cristãos/ocidentais, entre a esfera da política e a esfera da religião. Mas, mesmo dentro do Ocidente, foi mal percebida a vitória na Guerra Fria, quase sempre só atribuída ao capitalismo-liberal e à democracia-liberal. Foi subestimada a importância de uma vitória paralela, ainda que sob forma difusa, daquilo que nos EUA se chama a New Left (Nova Esquerda) ou, numa designação alternativa não totalmente coincidente, a esquerda multicultural/esquerda radical.
2. As marcas intelectuais e políticas profundas deixadas pela Guerra Fria — e de toda a luta política imediatamente anterior — fizeram esquecer que existem dois grandes terrenos de discórdia ao nível ideológico, e não apenas um: a economia política e a cultura. Assim, no terreno da economia política ocorreu uma vitória (óbvia) de ideias liberais (ou neo-liberais), tendo como referências fundamentais Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter e Milton Friedman, entre outros. Mas também ocorreu uma vitória (menos óbvia) no terreno da cultura, de ideias da Nova Esquerda (e de algumas das suas versões radicais), tendo como referências incontornáveis Michel Foucault, Jaques Derrida e Judith Butler, entre outros.
Paradoxalmente, as ideias que triunfaram na globalização, à direita e à esquerda, vieram das margens. No pós-II Guerra Mundial, o pensamento liberal (e/ou neo-liberal) era minoritário e relativamente marginal, num sistema dominado até aos anos 1970 fundamentalmente pelo keynesianismo e com significativa influência do marxismo. A partir dos anos 1980, esse ideário conquistou o terreno da economia. Sinal evidente do seu sucesso, é a actual massificação das ideias da competitividade, do empreendedorismo, da inovação, da abertura dos mercados, da superioridade da iniciativa económica privada, etc..
Também o pensamento da Nova Esquerda (e de parte da esquerda radical), uma minoria actuando igualmente a partir das margens do sistema social e político até aos anos 1960, fez o seu caminho vitorioso. Ideias, práticas sociais e valores que até aos anos 1960/1970, ou ainda mais à frente, eram vistas como radicais e marginais tornaram-se comuns e hoje surgem como tendo elevado valor moral: igualdade plena de género, direitos das minorias, liberdade sexual, estilos de vida alternativos fora do casamento e da família nuclear, etc.
3. No Ocidente, os indivíduos nascidos nas últimas décadas do século XX e inícios do século XXI foram — e continuam a ser — socializadas nesse mix de ideias, práticas e valores. Na família, na escola, nos media e nas redes sociais, nas universidades, são fundamentalmente estas as ideias transmitidas, absorvendo algumas partes da sociedade mais a ideologia do pensamento económico liberal (e/ou neo-liberal) e outras partes a ideologia da Nova Esquerda (multicultural)/esquerda radical. A educação/ensino está largamente dominada por estas duas ideologias.
Mas esta forma de funcionar no Ocidente, sempre foi uma convivência frágil e só (muito) superficialmente harmoniosa. Na realidade, é algo até bastante contra natura, pelo menos sob o ponto de vista das visões últimas do mundo que lhe estão subjacentes. À direita, a vitória sobre o socialismo-comunismo na Guerra Fria — e a falência do modelo de economia de direcção central planificada onde os Estado monopolizava a actividade económica — criou, em muitos, a ideia errada de não existir competição ideológica à altura.
Inebriada pela vitória no campo da economia política, a direita deixou o terreno cultural quase todo para a Nova Esquerda (multicultural)/esquerda radical, vendo-o, com sobranceria, como algo menor (não dava lucro). Quanto à esquerda, claudicou, de facto, quase totalmente no campo da economia política, tornando-se o antigo ídolo (Marx), quase um espectro — na prática aceitou, ainda que a contragosto, a supremacia liberal (e/ou neo-liberal) na economia. Paradoxalmente, a derrota no terreno da economia política, associada à arrogância vitoriosa da direita, facilitou o aumento da influência da Nova Esquerda no terreno cultural durante a era da globalização.
4. O que na última década temos estado a assistir no Ocidente é a um desintegrar dessa espécie de acordo tácito de repartição das esferas de influência sobre a vida humana, entre a direita e a esquerda. Até há pouco tempo, o ideário económico liberal/neo-liberal de Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter e Milton Friedman e outros, convivia alegremente com o ideário anti-liberal e anti-capitalista de Michel Foucault, Jaques Derrida e Judith Butler e outras figuras intelectuais ícones da New Left.
No cerne dessa desintegração está a globalização e as transformações que provocou, as quais fizeram rebentar a paz podre ideológica instalada desde o final da Guerra Fria. Na sua faceta económica e comercial a globalização foi fundamentalmente impulsionada pela direita liberal (e/ou neoliberal). As suas ideias de competitividade, mercados globalmente abertos, supremacia quase absoluta da economia privada etc., levaram a crescentes desigualdades sociais entre aqueles que se adaptaram bem, tirando vantagens das oportunidades ligadas aos mercados globais e à lógica económica privada, e aqueles que sofrerem sobretudo os seus impactos negativos.
Embora sem lhe chamar globalização — e oficialmente ser uma crítica cáustica desta —, na sua faceta de fluxos globais de pessoas, desde migrantes económicos a refugiados, a globalização foi também muito estimulada e impulsionada pela Nova Esquerda/multicultural. (Isto, claro, a par do interesse material-empresarial lucrativo, de dispor de uma mão-de-obra abundante e barata). Quanto à esquerda, viu aí um novo terreno para pôr em prática o seu programa de defesa de grupos minoritários e de causas humanitárias. E viu também aí um interessante ganho político, pois os fluxos migratórios poderiam aumentar-lhe a clientela política, o que dava muito jeito numa altura em que o proletariado — no sentido marxista do conceito — cada vez mais escasseava no Ocidente.
5. Como resultado, a acalmia ideológica instalada desde os anos 1990 — na realidade, mais uma paz podre ideológica, pelas razões apontadas —, a qual parecia trazer consigo harmonia social, progresso e de bem-estar económico, está a desintegrar-se. É talvez um resultado inesperado para muitos. Todavia, olhando com mais atenção, não é um resultado muito surpreendente. Como notado, quer as políticas económicas e comerciais impulsionadoras da globalização (ao gosto do ideário liberal e/ou neo-liberal da direita); quer as políticas também impulsionadoras da globalização, mas de abertura aos fluxos migratórios globais (agora ao gosto da Nova Esquerda/esquerda multicultural), para além dos seus méritos, trouxeram inúmeras tensões sociais e políticas que hoje estamos a sentir em pleno.
O resultado foi fazerem explodir as contradições do mix de ideias que triunfou após a Guerra-Fria. A direita, agora especialmente numa versão de direita radical e/ou populista, contesta, entre outras coisas, a esfera de influência (hegemonia) da esquerda no terreno cultural e dos valores, abrindo uma nova frente política — a guerra cultural. Fá-lo de uma forma agressiva que a direita convencional-tradicional, concentrada na economia e imbuída de ideias liberais / neo-liberais, nunca fez, seja por concessão (in)voluntária ou por incapacidade de entrar nesse terreno.
Quanto à esquerda, para além de se sentir ameaçada na sua esfera de influência natural — e de retaliar usando a sua primazia no terreno mediático e intelectual —, volta agora a dar sinais de querer entrar no campo da economia-política que tinha abandonado desde o final da Guerra-Fria. Vê nos efeitos desastrosos da pandemia da covid-19 sobre a economia (privada) e no regresso do Estado-interventor, uma oportunidade para afastar o liberalismo económico e reciclar as antigas ideias de uma economia sob controlo público. É este o confronto político-ideológico que está em marcha e vai marcar uma globalização em retrocesso a que já estamos a assistir.