Centeno no Banco de Portugal: à mulher de César não interessa parecer séria?
O governo foi desastrado na transferência de Centeno para o BdP. Porque a hipótese de Centeno ser um “moço de recados” não pode ser recusada. E porque perpassa a impressão que o governo quer, pode e manda.
1. Mário Centeno vai ser o próximo governador do Banco de Portugal (BdP). Transita diretamente do ministério das finanças, que liderou durante cinco anos, para a autoridade monetária. Transita sem período de nojo.
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1. Mário Centeno vai ser o próximo governador do Banco de Portugal (BdP). Transita diretamente do ministério das finanças, que liderou durante cinco anos, para a autoridade monetária. Transita sem período de nojo.
2. Os que defendem a escolha do governo privilegiam a (por si considerada) elevada competência técnica do nomeado. É o “Ronaldo das Finanças”, o “mago” que conseguiu o primeiro superavit orçamental da era democrática (fazendo-se tábua-rasa da favorável conjuntura internacional...), o homem que liderou o Eurogrupo – não há ninguém melhor do que Centeno para tomar as rédeas do BdP.
3. Os que criticam a escolha invocam a incompatibilidade entre o Centeno de ontem e o Centeno de amanhã. Em muitos casos, têm contas políticas a acertar, o que os desqualifica na crítica. Duvidam que Centeno consiga ser independente do governo, sendo essa a crítica mais consistente.
4. Os defensores de Centeno no BdP, fazendo coro com o próprio (como enfatizou em entrevista à RTP), argumentam que ter sido ministro não é cadastro nem desqualifica para a liderança do BdP. Menos convincente é o argumento, também exposto por Centeno, dos precedentes anteriores, lembrando nomes que transitaram do ministério das finanças para o BdP e que gravitavam na órbita do PSD. As circunstâncias eram, contudo, diferentes. Nessa altura, ou o BdP não era independente do governo, ou era-o ainda numa fase embrionária.
5. O que está em causa não se limita ao tabuleiro político, nem a uma perseguição ad hominem, como alguns preconizaram quando o PAN tentou agendar uma proposta legislativa para impedir a transição entre o ministério das finanças e o BdP durante cinco anos. A grelha de análise contempla duas interrogações: i) será Centeno capaz de respeitar o estatuto de independência política a que está constitucionalmente vinculado? ii) Será relevante o anterior titular da pasta das finanças assumir a liderança do BdP?
6. Desde que a União Económica e Monetária (UEM) foi arquitetada, os bancos centrais ganharam um peso político que não possuíam antes. A independência política do Banco Central Europeu (BCE) foi consagrada no Tratado de Maastricht e estendeu-se aos bancos centrais nacionais, ditando revisões constitucionais minimalistas que acolheram a emancipação dos bancos centrais. Quando comparado com outros bancos centrais, o BCE é o banco central que possui mais independência política. Ao longo da história da UEM, o BCE e certos governadores de bancos centrais nacionais têm provado que a independência política não é “para inglês ver”. Basta recordar o papel central de Draghi na superação da crise da zona euro, com o programa de compra de dívida pública no mercado secundário. Ou a reprimenda que Trichet (o seu antecessor) deu a Sarkozy (ambos franceses e do mesmo partido) quando o presidente francês arriscou uns palpites sobre a política monetária da zona euro.
Neste contexto, tem cabimento interrogar se Centeno será capaz de respeitar o estatuto de independência política. Primeiro, o BdP exerce funções de supervisão bancária (ainda que o poder seja amalgamado na União Bancária) e poderá ser chamado a deliberar sobre assuntos que foram decididos por Centeno-ministro-das-finanças. Parece óbvio o conflito de interesses. Segundo, a política monetária da zona euro é decidida pelo Conselho de Governadores do BCE, onde Centeno terá lugar. É apenas um voto no universo dos votos relevantes para as decisões da autoridade monetária. O BdP é responsável pela execução da política monetária em território nacional. Não está em causa um sentido de autonomia nacional, como estaria se o BdP fosse o único responsável pela política monetária. Centeno, o governador do BdP, terá de articular com os seus pares. Convém não exagerar a importância do cargo.
7. Os críticos de Centeno no BdP denunciam a possível cumplicidade entre o novo governador e o governo de que saiu há dias. Aqui a análise joga-se no campo das hipóteses, com o auxílio da ciência política. Alguns politólogos argumentam que os membros de bancos centrais atuam como membros de uma comunidade epistémica. Quando entram para o banco central, os economistas (a análise aplica-se a economistas) interiorizam um espírito de missão que os desprende da tutela dos órgãos políticos. Respeitam um código de conduta próprio e exibem fortes laços de solidariedade interpares. É como se fosse possível à mesma pessoa despir o casaco de político (enquanto ministro das finanças) e vestir o casaco de técnico (enquanto membro do banco central), perdendo a ligação ao meio político.
O futuro dirá se a teoria das comunidades epistémicas é corroborada pelo consulado de Centeno no BdP. A transição sem período de nojo traz nas entrelinhas a hipótese de Centeno ser um “moço de recados” do governo (na hipótese dos favores que têm de ser pagos), o que prejudica a reputação interpares do BdP e de Centeno, que parece ser sensível à glorificação que outros de si fazem. Ou não: os mentideiros da política insinuam que a saída de Centeno não foi pacífica e que as relações entre Costa e Centeno se deterioraram, apesar da encenação montada no dia da despedida do ministro das finanças. Se os mentideiros estiverem corretos, e se Centeno tiver uma agenda pessoal, o novo governador do BdP terá interesse em atuar de forma independente, não respondendo a solicitações do governo (o que, do ponto de vista constitucional é vedado ao governo e ao governador do BdP).
8. Os cânones das ciências sociais fogem de análises especulativas. Os oráculos não têm aqui lugar. O máximo admissível é avançar cenários que levem em consideração a experiência do passado, incorporando dados que influenciam o contexto presente e que interiorizam características das personalidades envolvidas. Sopesados os argumentos expostos, é impossível antever se Centeno-governador-do-BdP vai ser diferente de Centeno-ministro-das finanças (como o perfil institucional exige). Uma coisa parece certa: mais importante do que apregoar um atributo de uma pessoa é a perceção que desse atributo se tem. É aqui que faz sentido evocar um velho adágio: “à mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.
Quando regresso a este adágio, não posso deixar de concluir que o governo foi desastrado na transferência de Centeno para o BdP. Porque a hipótese de Centeno ser um “moço de recados” não pode ser recusada. E porque perpassa a impressão que o governo (e o PS, com o consentimento tácito de uma ampla maioria do parlamento) quer, pode e manda.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico