O valor das palavras. As declarações de Fernando Medina ao Independent
Terá Fernando Medina finalmente compreendido que uma cidade sem habitantes e (agora) com menos turistas é uma cidade condenada?
Todos recordamos as declarações do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, na Cimeira da Confederação do Turismo Português em 2016, a propósito da pressão turística na capital. Nesse momento, afirmava: “Pessoalmente, tenho de dizer que não sei que conceito é esse, não sei o que é ter turistas a mais”, assumindo como desafio central para o município “agarrar o extraordinário momento que estamos a viver e projectá-lo, prolongá-lo no futuro”, sem colocar “obstáculos a nível institucional ou infra-estrutural”.
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Todos recordamos as declarações do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, na Cimeira da Confederação do Turismo Português em 2016, a propósito da pressão turística na capital. Nesse momento, afirmava: “Pessoalmente, tenho de dizer que não sei que conceito é esse, não sei o que é ter turistas a mais”, assumindo como desafio central para o município “agarrar o extraordinário momento que estamos a viver e projectá-lo, prolongá-lo no futuro”, sem colocar “obstáculos a nível institucional ou infra-estrutural”.
Entretanto, Lisboa continuou a perder população (mais de 40 mil residentes entre 2010-2018 segundo dados do Pordata), tornou-se a capital europeia com maior número de habitações convertidas em alojamento local por habitante, verificou um aumento exponencial dos valores do preço do imobiliário, assistiu a despejos e dificuldades críticas no acesso à habitação e inclusivamente à expansão dos bairros de barracas. Na retaguarda do “extraordinário momento" referido pelo presidente da Câmara de Lisboa escondiam-se as profundas vulnerabilidades estruturais de uns país deixado à mercê de circuitos económicos frágeis e voláteis como o imobiliário, a construção ou o turismo e de uma cada vez maior precarização do trabalho.
Instrumentos como os “vistos gold", o estatuto de residentes não-habituais, a alteração ao Novo Regime de Arrendamento Urbano (2012), que permitiram a atracção de investimento estrangeiro, liberalizaram as rendas e facilitaram os despejos, constituíram um atalho político para a saída da última crise económica com a qual o município alinhou. Afinal de contas, o turismo contribuía para o PIB e para o emprego, a cidade poderia reabilitar-se e o aumento das receitas nos cofres da Câmara Municipal de Lisboa era bem-vinda. Só em 2019 o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) ascendeu a 120 milhões de euros, o Imposto Municipal sobre Transacções a 226 milhões de Euros, a taxa turística a um valor de cerca 36 milhões de euros.
Os investimentos municipais decorrentes desta receita foram sobretudo canalizados para as grandes operações de regeneração urbana e para os grandes eventos capazes de projectar a cidade a nível internacional – uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Pelo contrário, os problemas estruturais e endógenos de Lisboa e da sua área metropolitana, os primeiros que deveriam ser resolvidos, agravaram-se e permaneceram na invisibilidade. A transformação da cidade e a sua governação focou-se em engordar a “galinha dos ovos de ouro do crescimento económico”, o turismo como designou Paulo Portas, mesmo que durante o processo o tecido social urbano tivesse que ser sacrificado, mesmo que durante o processo a cidade se esvaziasse de vida e se transmutasse num mero cenário, mesmo que as periferias engordassem e se sobrelotassem, mesmo que a qualidade de vida das pessoas se deteriorasse.
O tal futuro acabou mesmo por chegar, mas não é extraordinário, pelo contrário trouxe más notícias relativamente à política estratégica seguida na capital e mesmo no país. Perante a covid-19, um “silêncio ruidoso” instalou-se no centro de Lisboa, anunciando uma ruína económica e social sem precedentes. No terminal de cruzeiros não se vêem navios, as praças resplandecentes e renovadas estão desertas, nos restaurantes e nas lojas os empregados estão à porta à espera de clientes, os alojamentos locais estão vazios e fechados.
Em simultâneo, a pandemia tornou visíveis as desigualdades críticas que se sedimentaram no território metropolitano ao longo do tempo. Os surtos recentes permitem relacionar graves problemas habitacionais a situações de precariedade laboral ou de pobreza, bem como a dificuldades de mobilidade urbana. As recentes declarações de Fernando Medina são, por isso, recebidas com espanto. Estamos em face de um fenómeno em que o feitiço se virou contra o feiticeiro e o feiticeiro se zangou e se virou contra o seu próprio feitiço?
Medina reconheceu que “as zonas que estão a recuperar mais rapidamente, em termos económicos e sociais, após confinamento em Lisboa são precisamente as que não estavam tão dependentes do turismo” e, numa entrevista ao The Independent, afirmou que pretende o regresso dos trabalhadores essenciais ao centro histórico, através da reconversão de habitações em regime de alojamento local para o arrendamento de longa duração a custos acessíveis. Quer agora uma cidade “mais verde e habitada e não uma cidade em risco de se tornar um belo museu”. Terá Fernando Medina finalmente compreendido que uma cidade sem habitantes e (agora) com menos turistas é uma cidade condenada?
É uma cidade condenada porque irá sofrer um enorme corte de receitas e, por isso, não conseguirá manter o seu nível de serviços e infra-estruturas, é uma cidade condenada porque a sua estrutura económica está sobredimensionada em função do turismo e agora não existem nem habitantes suficientes, nem visitantes, nem capacidade salarial para a suportar. Os programas de apoio ao arrendamento de longa duração (Porta 35, Programa de Arrendamento Acessível, Renda Segura), dos quais se irá socorrer para a implementação desta nova estratégia, apresentam problemas e estão com dificuldades de execução. Foram sempre paliativos, mais preocupados em proteger as dinâmicas do mercado imobiliário do que promover uma verdadeira política de habitação adaptada à realidade económica e social do país.
Compreendendo a complexidade das decisões políticas no momento que vivemos seria de esperar que, com a mesma rapidez que Fernando Medina veio proferir novas visões para a cidade ou culpar as chefias da DGS pelo descontrolo da pandemia em Lisboa, assumisse também a parte que lhe cabe de responsabilidade. O estímulo a um modelo de turismo sustentável, a atracção de novos habitantes, a diversificação do tecido social e económico da cidade ou a distribuição da riqueza da capital no sentido de reduzir as desigualdades metropolitanas nunca foram o seu objectivo prioritário. Sem a capacidade de reconhecermos os nossos erros, as palavras que proferimos perdem o valor. Em política, a situação é mais grave, a falta de reconhecimento dos erros e dos impactos de decisões que a todos afectam desvitalizam a democracia e isso é algo que não poderemos permitir nem deixar passar em branco.