Mais covid-19, mais urgências e cansaço das equipas: o triplo desafio dos hospitais de Lisboa

Os hospitais adaptaram-se para fazer frente à pandemia — apesar do “medo” e “ansiedade” sentidos pelos profissionais de saúde. Agora, mais de quatro meses volvidos, o que mais se nota nas equipas é o cansaço de quem estava preparado para um pico, mas que começa a desanimar por não ver o fim à “maratona”.

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No hospital Amadora-Sintra, nota-se uma maior afluência às urgências de doentes covid-19 e não covid-19 Rui Gaudêncio/Arquivo

Esperavam a covid-19 desde Dezembro e tentaram preparar-se como podiam para uma doença sobre a qual muito não se sabia – como soldados numa trincheira que esperam um inimigo sem rosto. A resposta à doença é mesmo encarada como um combate, longe de acabar. A ansiedade dá lugar ao cansaço: afinal, este não foi o episódio “agudo” que se esperava — é uma “maratona” que exige preparação e, sobretudo, capacidade de “sacrifício”. O PÚBLICO falou com três médicas da região de Lisboa e Vale do Tejo, actualmente a mais afectada pela covid-19, para perceber como estão os profissionais de saúde a viver esta fase da pandemia.

Ana Valverde tornou-se directora clínica do hospital Amadora-Sintra no meio de uma tempestade: em Março. É um dos hospitais da Grande Lisboa que mais pressão tem sentido “desde o início de Junho” devido ao aumento dos casos de covid-19 na região. Os desafios multiplicam-se: para além de ter de dar resposta aos doentes com covid-19, também as urgências se voltaram a encher com outros pacientes. “No meio de Junho, não tínhamos apenas este novo surto: é que o medo inicial dos doentes não-covid em vir ao hospital foi-se diluindo, a procura assistencial dos doentes não-covid crónicos aumentou.”

Neste hospital, a preparação começou logo no início da epidemia. “Quando, em Dezembro de 2019, começámos a ouvir falar dos primeiros casos de covid, não ficámos alarmados, mas também não ficámos descansados”, conta a directora clínica. O Ano Novo chinês preocupava-a, mas o caos em Espanha e Itália obrigou o hospital a agir depressa. Começou-se a separar circuitos, aproveitando a arquitectura do espaço – uma torre para os doentes covid positivos e outra para os covid negativos. Este passo foi fulcral “para não incorrer nos erros dos italianos, que, por misturarem doentes, acabaram por não ter profissionais para os tratar”.

“Não digo que Portugal tenha tido sorte — porque isto não é sorte —, mas teve mais tempo para se preparar do que os seus vizinhos. A pandemia deu-nos uma folga para preparar os hospitais e as estruturas, ao contrário do que aconteceu em Espanha e Itália”, avalia. E, se o hospital ainda não entrou “numa situação de ruptura”, é porque a rede de apoio hospitalar em Lisboa e Vale do Tejo é “ágil e baseada no diálogo”. “Se podia ser melhor? Acredito que sim, mas também podia ser pior.”

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Hospital Beatriz Ângelo, em Loures MIGUEL MANSO/ARQUIVO

Fracas condições de habitabilidade explicam números

Na opinião de Ana Valverde, boa parte dos novos casos de covid-19 são causados e potenciados pelas fracas condições socioeconómicas que se observam na área de actuação do hospital: “Muitos destes doentes têm condições de habitabilidade aquém do desejável: vivem todos juntos em locais pequenos e basta ter um caso positivo para contagiar um grupo de pessoas relativamente grande. Não se consegue o isolamento social desejável e que seria preciso para não haver contágio.” Para além disso, “recorrem pouco aos cuidados de saúde primários”, desenvolvendo doenças crónicas que os colocam nos grupos de risco da doença. E são “jovens”, mas não tanto quanto se pensa: têm entre 40 e 50 anos.

Ao início não era assim: quem chegava eram principalmente pessoas dos 70 aos 90 anos, com algumas co-morbilidades, como “hipertensão arterial, diabetes”. Pelo menos “a partir de Abril e Maio”, começaram a aparecer no Amadora-Sintra doentes de 50 e 60 anos, também com “algumas co-morbilidades – com outras infecções crónicas, como VIH, ou com outras doenças de base, o que também os punha numa posição vulnerável. São menos os casos de pessoas saudáveis sem qualquer patologia.”

E quatro meses de luta já começam a fazer-se notar junto dos seus profissionais de saúde. “Uma vez que a primeira fase nem correu assim tão mal, porque lhe conseguimos fazer frente, neste momento as equipas começam a acusar cansaço”, avalia. “Num ano normal, por esta altura, as pessoas começam a entrar de férias e, por outro lado, devido à pandemia, a exigência foi maior do que noutros anos. Por esse motivo, não nos recusámos a autorizar férias.”

Mas ainda não é altura de baixar os braços.

“Foi como estar na praia à espera de um tsunami

“Exaustão” é mesmo a palavra de ordem junto dos profissionais de saúde. Inês Urmal, interna do Centro Hospitalar de Lisboa Central, usa-a e acrescenta: “Todos os dias chegamos a casa com o sentimento de missão cumprida, mas com uma incerteza relativamente ao dia seguinte. E não sabemos quanto tempo vamos aguentar, não sabemos quantos de nós irão sair desta pandemia da mesma maneira que entraram.” O cansaço é geral, conta.

Desde o “final de Fevereiro” que Inês Urmal se prepara para o pior. “Usámos muitas vezes esta expressão: sentíamo-nos como estando na praia à espera de um tsunami. Sempre com uma atitude expectante e muito receosos de como ia ser a próxima urgência, o dia seguinte.” “A única maneira de ultrapassar isto é com um sentido muito grande de responsabilidade, de missão, de vestir a camisola nos sítios onde trabalhamos diariamente”, diz. Mas isso acontece “sempre com muito espírito de sacrifício”.

Ela e outros internos, colegas “mais novos” que estão a dar os primeiros passos na medicina, tentaram preparar-se e ajudar na organização das respostas: “Tentámos arranjar estruturas para combater a pandemia logo quando começámos a perceber que se calhar não era só um vírus isolado na China e que chegaria ao nosso país.” Procuraram “redistribuir-se entre os vários serviços”, para “ajudar de forma mais rápida e útil”. “[Os meus colegas] Foram incansáveis e prontificaram-se a ajudar naquilo que nós sabíamos fazer, dentro das nossas capacidades”, conta. É por isso que a outra palavra que escolhe para descrever os últimos meses é “união”.

Desde o início da pandemia, Inês Urmal passou por vários hospitais, todos na cidade de Lisboa: esteve três semanas no Curry Cabral, na enfermaria dedicada à covid-19, seguidas de seis semanas em exclusivo no serviço de urgências do São José. No final de Junho voltou “ao normal”: ao hospital dos Capuchos. Mas pelo menos uma vez por semana volta às urgências do São José. E vê bastantes jovens a chegar às urgências com covid-19.

Enquanto esteve no Curry Cabral – um dos hospitais de referência para o tratamento da covid-19 em Portugal – “havia uma tendência para os doentes internados serem de uma faixa etária mais elevada e com co-morbilidades”. Agora, nota uma alteração: voltou à “actividade normal” e, em contacto com os doentes da urgência, nota uma “grande mudança para as faixas etárias mais jovens”. Há muitos doentes com menos de 30 anos e alguns entre os 30 e os 45. “Felizmente, no nosso hospital, tem sido possível que a maior parte desses casos seja gerida em ambulatório”. [Se assim não fosse,] arriscaria dizer que, se estes jovens que chegam agora ao serviço de urgência tivessem todos critérios de gravidade para internamento, já teríamos ultrapassado a nossa capacidade de resposta há muito tempo.”

Justificar o aumento de casos é mais difícil, mas nota que “há casos em que as pessoas cumpriram as medidas de isolamento e acabaram por se infectar em contextos familiares”, como também se verifica no Amadora-Sintra, mas lamenta que ainda exista “um grupo muito significativo de pessoas que não reconhece estas medidas [de distanciamento físico] como sendo fundamentais para o controlo da pandemia”.

“Um ajuntamento pode ser um jantar de família”

Ao início, era o medo. Sara Lino, médica infecciologista do Hospital Curry Cabral, sentiu medo que o Serviço Nacional de Saúde soçobrasse perante a pandemia. “Começámos a ver os outros sistemas de saúde, o de Itália, o de Espanha, muito sobrecarregados, com muitas mortes, muitos casos graves. Aí assustámo-nos, achámos que não íamos conseguir, que o nosso sistema de saúde ia entrar em colapso, que as pessoas iam começar a morrer por falta de assistência ou por incapacidade de terem acesso aos cuidados de saúde.”

Agora, o que resta é sobretudo cansaço. “Todos achámos que ia ser uma coisa aguda, que íamos ter mais trabalho durante menos tempo. O que acabou por acontecer é que nunca tivemos um máximo de trabalho. Trabalhámos muito e nunca estivemos desesperados sem poder ir para casa… O problema é que se tornou uma situação crónica.”

É que em Lisboa, ao contrário do que aconteceu no Norte, onde houve pico, [houve] sempre mais ou menos o mesmo número de doentes sem grandes melhorias ao longo do tempo. Não temos tantos casos graves como tínhamos ao início, mas continuam a precisar de estar internados.”

Sobre os doentes hospitalizados diz que a média de idades continua a ser elevada, apesar de encontrar alguns com 40 e 50 anos e até “um rapaz com 19”. A grande diferença que aponta é que “as pessoas agora já têm aquela noção de que apanharam porque foram jantar com amigos, porque levantaram as medidas de confinamento, porque começaram a fazer pequenos ajuntamentos”.

Por esta altura, os serviços das especialidades estão a retomar consultas e cirurgias agendadas antes da pandemia, que foram canceladas por causa da doença, e as listas de espera que, entretanto, engrossaram, mas encontram sempre este “empecilho”: o coronavírus.

Como a situação “está longe de estar controlada”, a médica infecciologista lança um apelo, que se junta ao de Inês Urmal e Ana Valverde: Ajudem-nos a ajudar-vos. “O meu apelo é no sentido de se seguir as orientações da DGS, evitar ajuntamentos. É triste, mas um ajuntamento pode ser, às vezes, um jantar de família, porque basta uma dessas pessoas ser portadora do vírus para todas ficarem [doentes]”, resume Sara Lino.

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Odivelas Mário Cruz/Lusa

Até porque a “maratona” ainda vai a meio, observa Ana Valverde: “Temos de viver isto como uma maratona. Não podemos baixar a guarda, mas não podemos desanimar a meio. Não se pode dizer que isto acabou e que já podemos ter uma vida normal. Não: temos de fazer uma vida o mais normal possível, com alguma precaução, com as medidas da Direcção-Geral da Saúde. É assim que combatemos a pandemia até termos uma melhor solução.” A vacina.