Criatividade e estratégia vão a jogo em Valorant — e já há equipas portuguesas a competir

A pandemia poderia ter travado o desenvolvimento de Valorant, o novo jogo online da Riot Games, conhecida por League of Legends, mas o prazo foi cumprido. Antes, milhares puderam jogá-lo numa versão beta “bem visível” que contribuiu para a sua popularidade. E já há equipas portuguesas em competição.

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O dia de trabalho de Tiago Rodrigues, 30 anos, inicia-se por volta das 13h30 e termina pela “hora de jantar”. “Fora isso, temos de dar horas individualmente para manter a performance individual. E são muitas horas do nosso tempo livre”, conta. Tiago é jogador profissional de esports e os seus dias, pelo menos até à 01h00, são dedicados a Valorant. O novo jogo de tiro táctico na primeira pessoa da Riot Games, exclusivamente para computador, foi lançado a 2 de Junho e opõe duas equipas, constituídas por cinco elementos cada. O jovem juntou-se a Alexandre Silva, Eduardo Torres, Tiago Moreira e Daniel Ferreira para constituir a equipa de Valorant da Team B7. Naqueles mapas, os cinco opõem-se a outros tantos e combinam as habilidades das personagens escolhidas. A 22 Esports também já tem uma equipa nacional para o mesmo jogo, composta por David Caldeira, Gonçalo Gonçalves, Miguel Romão, André Andrade e Ricardo Miranda.

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Daniel Ferreira integra a equipa de "Valorant" da Team B7 Nelson Garrido

Conhecido como “foryou”, Daniel Ferreira dedicou os últimos dois anos à competição em CS:GO, ainda que a relação com o jogo da Valve tenha começado em 2007. “Este ano, decidi arriscar em Valorant”, diz. José Ferraz, director da divisão esports da Team B7, descreve-o como alguém “que quer mostrar-se e afirmar-se como jogador de topo” em Valorant. Já “mowzassa” (Tiago Rodrigues) é “um veterano nos esports”, tendo passado por equipas internacionais a bordo de Overwatch, que jogou a partir 2015 até abraçar o novo desafio. E o cruzamento entre Overwatch e CS:GO parece ser uma realidade em Valorant, segundo os dois jogadores profissionais.

Para Tiago, “Valorant consegue um bom misto entre a complexidade de capacidades dos agentes [as personagens disponíveis para jogar] e a simplicidade para quem vê o jogo”. Daniel opina que o título da Riot Games juntou “o melhor dos dois jogos” citados. “A maior distinção é mesmo a diversidade táctica que vai existir por causa do número de agentes. É um dos jogos do futuro”, prevê José Ferraz.

O jogo também está a obrigar a concorrência a “mexer-se”. Ainda que considere a popularidade de CS:GO “inatingível”, Daniel reconhece que a Valve tem feito alterações para responder à popularidade do produto da Riot Games. “E é a marca que se mexe melhor. É um projecto de longo prazo. É cedo para dizer o que Valorant será, mas já começa a destacar-se no mercado”, diz José Ferraz.

Para Anna Donlon, produtora executiva do jogo (e parte da mesma casa que mostrou ao mundo League of Legends), as comparações entre ambos são subjectivas: “São jogos diferentes. Será interessante ver como e quão poderemos crescer. Claro que gostaríamos de chegar à marca que League of Legends tem, mas, repito, são jogos diferentes.” Igual linha de pensamento é adoptada por Daniel — mesmo no que diz respeito a CS:GO: “Acho que o melhor é termos um ecossistema onde ambos possam existir.”

A norte-americana escolhe quatro palavras para o resumir: “competição, criatividade, foco e prática”. E enfatiza, “acima de tudo”, o “muito espaço que existe para a criatividade”. Tal como houve para reunir opiniões dos gamers que, antes do lançamento oficial, puderam conhecer Valorant num closed beta “muito visível” para a comunidade. Normalmente, os closed beta destinam-se a um grupo restrito de pessoas fora da companhia, que testam o jogo antes do seu lançamento; no caso de Valorant, qualquer um poderia ter acesso à versão em desenvolvimento.

E não foram poucos: “Por dia, tivemos três milhões de pessoas a jogar ao mesmo tempo no closed beta na Twitch. Todos os erros e bugs eram bastante visíveis e foi muito bom para nós, porque reunimos informação e pudemos reavaliar algumas decisões”, conta Anna Donlon. Por agora, na Twitch, o videojogo conta com mais de cinco milhões de seguidores. Nessa versão (não tão) fechada do jogo, para entrar era apenas necessário um convite — o sentimento de exclusividade inicial seria tanto que até houve quem chegasse a vender contas de acesso ao jogo por 150 dólares (pouco mais de 132 euros). Depois, a acessibilidade permitida a milhares de jogadores espalhados pelo globo poderá ter contribuído para que Valorant tenha reunido a fama necessária para atrair jogadores de todo o mundo. “A Riot pegou em alguns jogadores e streamers para jogar e quem ia assistir poderia ganhar acesso ao jogo. Acho que isso contribuiu para que se tenha criado essa popularidade, que é justificada”, explica Daniel.

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Anna Donlon DR

Não é amador, mas foi desenvolvido em casa

Mas há mais ingredientes para que o bolo da popularidade de Valorant tenha saído tão saboroso das mãos da Riot Games. E um deles, talvez o mais preponderante, afectou o mundo inteiro — a pandemia de covid-19. É difícil separar a influência do confinamento deste crescimento: e, de acordo com os dados da Stream Hatchet divulgados pela Streamlabs (um serviço de software para transmissões ao vivo), a Twitch reuniu mais de cinco mil milhões de horas assistidas entre Abril e Junho de 2020. Esta marca representa um recorde sobre outro recorde alcançado entre Janeiro e Março deste ano, quando foram ultrapassadas as três mil milhões de horas assistidas.

Contudo, e por muito que esse tenha sido um valioso empurrão para o sucesso de Valorant, desenvolvê-lo a meio de uma pandemia “não foi, de todo, fácil”. “Estávamos todos muito animados e no caminho certo. Depois, tudo mudou no mundo e passámos a trabalhar em casa”, começa por explicar Anna Donlon. “Pensámos que seria impossível atingir o nosso objectivo de lançar o jogo no início de Junho. Estávamos certos de que teríamos de adiar, já que o foco era que a nossa equipa estivesse saudável e segura”, acrescenta.

Ainda assim, a equipa que trabalhou para o desenvolvimento do jogo “adaptou-se” e Anna diz ter perdido a conta à quantidade de mudanças que a pandemia trouxe ao processo. A produtora executiva do jogo aponta como exemplo as vozes do jogo, “que não puderam ser gravadas em estúdio, como habitual”. E até a própria promoção do jogo em território norte-americano e além-fronteiras: “Gostaríamos de ter eventos em vários locais, claro. Mas não pudemos viajar e isso teve um impacto imenso dentro e fora da equipa.”

“Senti-me mais desconectada. Eu gosto sempre de ter a minha equipa comigo, de passar pelas secretárias, acompanhar de perto”, explica. No entanto, também destaca mudanças positivas que poderão fazer parte do normal a partir de agora: “Aprendemos muito sobre o que é possível fazer a partir de casa. E há uma grande quantidade de talento espalhada pelo mundo, à qual podemos chegar e trabalhar sem partilhar o mesmo espaço físico.” Por isso, frisa, “não é necessariamente verdade que toda a gente tenha de estar no escritório”. “Acho que é bom misturar os dois lados, existir uma espécie de logística de trabalho híbrida”, acrescenta.

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Reunir presencialmente os membros da equipa da Team B7 de Valorant também não é fácil. Diogo e José são de Braga, ao passo que Tiago vive em Aveiro. Os restantes jogadores são de Lisboa, tal como o gestor da equipa. “Tivemos de mudar planos para a criação de conteúdo e a produção do equipamento de equipa também atrasou. É difícil juntá-los, portanto fazemos tudo remotamente”, diz o director executivo.

Para bom piloto, bom motor

Ainda que Valorant tenha saído a tempo e horas, José Ferraz aponta que, “a nível de esports”, há muito para melhorar. “É difícil proporcionar bom conteúdo se quiser fazer torneios. A jogabilidade não está a cem por cento”, opina. “Para fazer transmissão é um bocado pobre, ainda não é como CS:GO”, refere, acrescentando que, contudo, “com tempo e investimento [esses problemas] serão resolvidos”.

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Ainda há muito para melhorar, considera José Ferraz Nelson Garrido

Para Daniel e Tiago, o grande problema encontra-se no comando ping, que permite saber o estado da conectividade entre equipamentos e o seu tempo de resposta. Por cá não é, ainda, o melhor. “Temos boas velocidades, mas o ping em certos servidores pela Europa é muito alta. Há jogadores de outros países com ping muito baixo, quase como se tivessem um servidor seu. Aqui, tenho 80 ou 100, o que interfere, porque um milissegundo de atraso faz toda a diferença e é uma desvantagem. Temos de pedir várias vezes para procurar outro servidor”, explica Tiago. Esta é uma inconveniência que surge nos torneios e treinos remotos com outras equipas. “Presencialmente, estamos em pé de igualdade”, aponta Daniel.

Isso aplica-se aos próprios computadores e até ao conforto da cadeira. Na impossibilidade de se realizarem eventos presenciais, a Team B7 (tal como todas as outras) participa nos torneios online. No final de Junho, marcaram presença no Rise of Titans, para o qual se qualificaram. Entre 7 e 10 de Julho decorre o Agents Showdown, exclusivo para equipas portuguesas, cujos prémios monetários totalizam os 350 euros (250 para o primeiro classificado, o restante para o segundo).

Valorant não é só para profissionais — “corre em qualquer computador”, assegura Tiago —, mas a máquina faz a diferença quando o objectivo é tornar-se num. “Nota-se sempre. É como na Fórmula 1. Podes ser um bom piloto, mas sem um bom carro é difícil chegares ao topo.”