A ciência que tem mudado o mundo
Peço-vos que exijam dos nossos governantes, sem barreiras e com total certeza, o apoio inquestionável ao programa do European Research Council, o pilar de excelência dos fundos europeus para a ciência.
Neste artigo venho-vos falar sobre investigação e ciência básica (isto é, não aplicada) – a chamada “investigação Blue Skies” (se quiserem, a ciência nas nuvens, sem um propósito aplicável imediato) –, aquela que não responde diretamente aos problemas da sociedade e por vezes é difícil de perceber imediatamente para que serve. Venho-vos falar sobre ciência básica, pois os financiamentos do European Research Council (ERC) – o pináculo da ciência europeia, o pilar de excelência dos fundos europeus para a ciência – encontram-se atualmente numa posição delicada: os vários países da União Europeia estão a debater qual o orçamento a atribuir para o próximo programa do ERC e há uma possibilidade muito forte deste programa – um dos mais bem-sucedidos da União Europeia – vir a sofrer cortes gigantescos em detrimento de outros programas.
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Neste artigo venho-vos falar sobre investigação e ciência básica (isto é, não aplicada) – a chamada “investigação Blue Skies” (se quiserem, a ciência nas nuvens, sem um propósito aplicável imediato) –, aquela que não responde diretamente aos problemas da sociedade e por vezes é difícil de perceber imediatamente para que serve. Venho-vos falar sobre ciência básica, pois os financiamentos do European Research Council (ERC) – o pináculo da ciência europeia, o pilar de excelência dos fundos europeus para a ciência – encontram-se atualmente numa posição delicada: os vários países da União Europeia estão a debater qual o orçamento a atribuir para o próximo programa do ERC e há uma possibilidade muito forte deste programa – um dos mais bem-sucedidos da União Europeia – vir a sofrer cortes gigantescos em detrimento de outros programas.
O programa do ERC é um programa típico de ciência dos académicos para os académicos – pensado, avaliado e executado pelos mesmos –, cujo critério único é a excelência, sem barreiras de tópicos e sem a necessidade de ter de responder a um problema imediato da sociedade. Mas é especialmente, e por menos plausível que possa parecer, o programa de ciência dos investigadores para a comunidade, para os contribuintes, os verdadeiros stakeholders – para vocês, sim.
Temáticas não aplicadas financiadas por este programa vão desde perceber de que modo é que a informação que detemos sobre objetos está organizada no cérebro até investigar como diferentes sementes interagem com o ambiente e a ação humana. E, afinal, para que interessa saber isto? Ou estudar o modo como podemos descobrir exoplanetas? Compreender buracos negros? Estudar e implementar arquivos linguístico-culturais? Compreender as bases genéticas da evolução em ecossistemas complexos? Ou olhar para as memórias herdadas pelas crianças que passaram pelos processos de descolonização das potências europeias (tudo exemplos de alguns dos financiamentos do ERC obtidos por cientistas portugueses)? Aparentemente, talvez para nada – mas, na verdade, para tudo.
A história da ciência ao longo dos tempos é inequívoca: a ciência básica tem contribuído de forma direta e avassaladora para responder a problemas societais fulcrais. O número de descobertas e invenções que advêm da ciência básica e sem as quais hoje não sonharíamos viver é absolutamente astronómico. Por exemplo, em grande parte a Internet deve-se à investigação básica em matemática nos anos 60 – poderíamos viver sem ela hoje? A ressonância magnética, um dos meios mais importantes de apoio ao diagnóstico médico, deve-se à investigação básica em física atómica. O laser e as suas aplicações quotidianas (como os DVD ou a fibra ótica) devem-se ao estudo de física e mecânica quântica. Os GPS e toda a navegação por satélite deve-se à ciência básica em física atómica, ao estudo da relatividade e à descoberta do relógio atómico. A lista continuaria quase sem fim – todas estas peças centrais do modo como vivemos atualmente foram um produto, possivelmente não esperado, da ciência básica.
Mas seria absolutamente redutor olhar só para as invenções derivadas diretamente da investigação básica como forma de avaliar a sua importância. A investigação básica interessa para tudo, pois é o pilar de qualquer ciência aplicada de excelência. A inovação da ciência aplicada não aparece num vácuo – surge sobre os ombros da ciência básica. Ao compreendermos o modo como funcionamos, como percecionamos o mundo, como a natureza se comporta, fornecemos os alicerces para investigação aplicada de qualidade.
Mas a importância da ciência básica tem que ser vista muito, mas muito, além dos seus produtos imediatos ou não tão imediatos. A ciência básica é também importante, pois traz literacia científica, fomenta a curiosidade e a paixão pelo saber. Como podemos responder às questões que nos acompanham desde o início dos tempos se não através da ciência básica? Este é um aspeto central e que não pode ser descurado – o ser humano, enquanto criador e sorvedor de conhecimento, vive da ciência básica e, quanto mais conhecimento temos, melhor conseguimos gerir o nosso mundo e responder às questões que nos vão surgindo.
É por tudo isto que hoje, mais ainda que noutros dias, vos peço que exijam dos nossos governantes, sem barreiras e com total certeza, o apoio inquestionável ao programa do ERC. É de extrema importância que exijamos que se mantenha esta ilha da excelência científica no meio do “primado da aplicabilidade, do aqui e agora”, e que se defenda quem se dedica à investigação Blue Skies, pois a ciência fundamental, mais tarde ou mais cedo, dá frutos aplicáveis e, no entretanto, gera literacia científica – talvez outro dos grandes flagelos do nosso século. Isso, enquanto usamos o nosso GPS para regressarmos a casa depois de um longo dia de trabalho, enquanto se come umas pipocas saídas de um microondas para acompanhar o DVD que vamos ver, enquanto ficamos a saber que afinal a lesão no joelho não é nada de grave como está patente na imagem de ressonância magnética que realizámos, e procuramos na Internet que raio é um relógio atómico.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico