Iconoclastia e política: a moral sem a história

Há uma diferença entre revisão histórica e iconoclastia, que é tão-somente o avesso da iconolatria. As sociedades pluralistas vivem bem sem o culto das imagens, o que invalida o gesto iconoclasta pseudo-emancipador. O lugar do poder foi desdivinizado, hoje apresenta-se vazio — e assim deverá permanecer.

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A plataforma HBO Max anunciou há três semanas que iria retirar do seu catálogo o filme E tudo o Vento Levou com a justificação de que “era produto do seu tempo” e “apresentava preconceitos étnicos e raciais”, tendo por isso de ser submetido a um “enquadramento do seu contexto histórico”. As recentes decisões no mesmo sentido, suscitadas pelo assassínio de George Floyd nos EUA, não são, porém, novidade. Em 2007, e na esteira de uma polémica que já vinha de 1960, Bienvenu Mbutu Mondondo, estudante congolês de Ciências Políticas em Bruxelas, moveu uma acção em tribunal, tendo em vista a proibição da venda de Tintim no Congo. Além dos preconceitos raciais, o álbum de Hergé foi igualmente atacado por antiecologismo. Em 2019, a rifa saiu a Balthus, cujo quadro Thérèse Dreaming, de 1938, foi acusado de sexualizar uma prepubescent girl, não podendo por isso ser mostrado às masses without providing any type of clarification, segundo se pode ler no texto da petição pública que pedia o enquadramento da obra. Os exemplos multiplicam-se.

Com variações estilísticas, a argumentação em favor da purga cultural assenta no facto de os valores, ideias ou crenças do passado não serem legítimos aos olhos do presente. Formulada nestes termos, a questão não passaria de uma lapalissada: a estranheza do passado é um dos elementos que o tornam precisamente passado. O problema está antes em aplicar ao passado como tal um conceito de dever ser, normativo. O passado não deveria ter sido como foi, trata-se do axioma básico de toda e qualquer falsificação (seja ela dolosa ou involuntária) da história, porque se sabe hoje que os seus valores, ideias e crenças estavam erradas — moral e politicamente falando. Do ponto de vista, por exemplo, das ideias científicas, a história é a história da conquista da verdade, do progresso. Os erros do passado são condições de possibilidade da epopeia do conhecimento; erros superados, é certo, mas ainda assim necessários. Galileu é um herói da ciência; Richelieu, um celerado. Se a ciência não deixa de ter uma ligação interna com questões valorativas, a objectividade cientifíco-natural não levanta os mesmos problemas das ciências humanas.

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Cena de E Tudo o Vento Levou (1939) Silver Screen Collection/Getty Images

Mas não é do passado que se trata; uma vez que muitos dos valores associados a livros, filmes, obras de arte, ou até palavras, são moralmente errados, e já o eram no seu próprio tempo, a questão já não pode ser posta em termos de anacronismo, mas sim em termos políticos. Se toda a cultura lato senso do passado necessita de “enquadramento”, toda a cultura do presente também dele precisa — o que põe imediatamente o problema nos termos da liberdade de expressão. Os critérios invocados para o passado são os mesmos que têm de o ser para o presente, ou antes, é por serem os critérios do presente que são também os critérios do passado. Facto banal: o historiador, como qualquer outra pessoa, não pode saltar por cima do seu tempo. Por essa razão, afirmar que é legítimo emitir juízos morais sobre o passado é uma inanidade intelectual — o juízo moral faz parte da condição humana. O problema reside alhures, concretamente no paralogismo de passar do juízo moral sobre o passado para a obrigação de o passado ter sido moral.

Se um determinado conjunto de valores, ideias, crenças, etc. possui à partida o monopólio da legitimidade moral, os acontecimentos históricos refractários a essa moral não deviam ter ocorrido, a história não passaria, pois, de um erro, seria ipso facto abolida enquanto história. Ora, o critério que julga a história de uma exterioridade total não precisou dela para existir, é supratemporal, naturalizado, ou, em linguagem marxista, mera ideologia, uma vez que inverte o postulado materialista básico de que o ser (que em bom jargão marxista é sempre ser histórico) determina a consciência. Mas só ele é legítimo. Quaisquer outros critérios concorrentes são ilegítimos, não podem sequer ter a pretensão de constituir um critério. Para rejeitar essa pretensão sobra a velha e relha acusação, ainda que em figurino novo, de que tais putativos critérios não passam de modalidades do obscurantismo, da ignorância ou da má-fé. Significa isso que os defensores ou representantes de tais critérios têm de ser julgados: ou de um ponto de vista jurídico-político, e condenados por imoralidade; ou de um ponto de vista pedagógico, e nesse caso reeducados. Tal como a história não deve existir, também eles não podem existir — não podem porque não devem.

Por ora, somente as estátuas foram atiradas ao rio. Por ora? Não haverá necessidade de nada mais, se o passado for determinado material, factualmente, a partir da óptica do presente — essa foi a lição de Orwell. Quando os factos desaparecem, a interpretação naturaliza-se com toda a naturalidade. Os novos puritanos das imagens, à imagem da Roma imperialista denunciada por Tácito, onde fazem o deserto chamam-lhe com falso nome a paz. Os recentes actos iconoclastas têm por objectivo assegurar o continuum necessário para manter a ilusão ideológica, da mesma maneira em que a vergonha que uma família de parvenus urbanos sente pelo tio pobre das berças é o toque a rebate subjectivo que indica onde está o ponto nevrálgico da representação ideológica da unidade. A noção de uma origem pura, imaculada, existente desde sempre, que todo o pensamento social, filosófico e até teológico do século XX rejeitou pelo seu potencial de violência, ressurge no ressentimento que sopita sob todas as formas de enquadramento, censura ou purga cultural. Este gnosticismo histórico de pacotilha traz no seu bojo os seus cátaros de esferovite, cujos perfeitos dispensarão às massas algum type of clarification.

Pasteurização da história

O processo de pasteurização da história, a calafetação do espaço público, constitui o conceito operatório do maniqueísmo. Ao homogeneizar negativamente o passado, em nome da moral, é a história que uma vez mais se elimina. O passado torna-se um inimigo por atacado, um inimigo absoluto. A condenação moral não conhece matizes, desse modo, as diferenças históricas nunca poderão ter qualquer valor. Assim, em nome do racismo que terá estado na base de alguma brutalidade policial recente nos EUA, a história é obliterada. Se o mundo viveu milhares de anos com a escravatura como instituição, os EUA toleraram-na de 1776 até à Guerra da Secessão 1861-1865, daqui até ao movimento dos direitos civis decorreram mais cem anos, em 2009 foi eleito um Presidente mestiço e os recentes acontecimentos foram sentidos amplamente como uma anomalia anacrónica e pábulo de um repúdio generalizado. Seria, claro está, uma sobreexigência maniqueísta supor que, em consequência de uma tal história, não existissem pessoas ou grupos nostálgicos de condições sociais passadas. Na luta contra a discriminação, porém, o superavit é inegável; os sinais — leia-se a história — são de grande esperança.

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Momento em que a estátua de Edward Colston, um comerciante de escravos do século XVII, foi atirada ao rio em Bristol, a 7 de Junho Giulia Spadafora/NurPhoto via Getty Images

A impossibilidade de fazer jus à historia como realidade desgarrada, contingente que é e que por isso nos impõe a tarefa de a compreender, de lhe dar uma unidade provisória e sujeita a revisão, e assim, e só assim, fazer de uma rapsódia de acontecimentos uma história — compreender e não escarnecer ou deplorar, para usar as palavras de Espinosa — e, ao mesmo tempo, saber que a história é isso e não a criação ex nihilo de uma ideia moral que gera necessariamente uma dissonância cognitiva, uma má consciência, que se trai na qualificação do racismo, sendo agora de rigueur acrescentar ao termo os epítetos “sistémico” ou “estrutural” para assim repor a ideia de uma totalidade má, especular relativamente à totalidade boa, a dos acusadores. É como quem diz o racismo nos EUA mudou, mas continua a ser o mesmo. A lógica subjacente aos diversos libelos acusatórios é só uma, é a lógica do tudo ou nada: corolário de uma subjectividade não descentrada, como as crianças malcriadas que recusam um quadrado de chocolate quando não se lhes dá a tablete toda. Nada pode escapar ao index dos Maniqueus redivivus, que na agressão moral caucionam e fruem a sua autojustificação supra-histórica.

A primeira grande vítima de um tal modo de pensar é o pluralismo em todos os seus aspectos: a ideia de que a sociedade não é um macrossujeito que fala pela boca de porta-vozes autorizados; faz-se antes de conflitos devidamente regulados por normas aceites, conflitos esses que são essencialmente produtivos e que desejavelmente constituam um processo de aprendizagem. Apenas um exemplo. O facto de Humberto Delgado ter sido um dos Tenentes da Revolução de 1926, e vários anos depois dirigente da Legião Portuguesa e da Mocidade Portuguesa, encomiasta de Hitler em 1941, em nada impediu que o aeroporto de Lisboa fosse baptizado com o seu nome. E o facto de em várias biografias esses cargos dirigentes serem omitidos também não traz mal ao mundo. A avaliação das pessoas, tal como a avaliação da história, o próprio acto historiográfico, só é possível na base de uma liberdade essencial, que responde ao que a rodeia. Numa sociedade pluralista, em que o mercado de ideias é livre, as omissões naturais, ditadas pelas preferências e identificações, são corrigidas pelo livre acesso à tradição cultural sob todas as suas formas — sem edições ad usum Delphini. Reificado um elemento de uma tradição ou de uma biografia, tudo o mais, em boa lógica, terá de ser amputado. A história desapareceu; a pessoa desapareceu. Resta apenas uma luta de entidades mágico-mitológicas. A conflitualidade já não decorre numa sociedade, no terreno dos compromissos e do provisório, do contingente, mas totaliza-se fora do tempo. Atentos os alvos da iconoclastia, a orientação política salta à vista. Os livros de Mao ou Estaline não necessitam de nenhum type of clarification. Só os dos outros. Em nenhum município português se rebaptizaram as várias ruas Salvador Allende, menos conhecido como anti-semita — e ainda bem que tal não aconteceu, essas ruas com esse nome já fazem parte da nossa história. Além da orientação política, a ignorância também desempenha o seu papel.

Pequenos deuses

O acto historiográfico decorre na história, no tempo, é parte de uma história mais alargada e sem fim à vista. Por essa razão, a história é tão contingente como aquilo de que é história. O não querer pôr-se à prova da história é querer salvaguardar uma identidade extra-histórica, que fosse, na mais canhestra das ideologias, causa sui. Nesse sentido, a história deixa também de ser produtiva, renuncia-se desse modo a alargar a compreensão do que constitui a dimensão específica do humano: a contingência radical. E dela faz parte o próprio passado, uma vez que o passado é o seu passado.

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A produtividade histórica é igualmente o que humaniza permanentemente o próprio passado submetendo-o a reinterpretações constantes, libertando em simultâneo o passado e o presente. Testemunho disso é por exemplo, mas um exemplo electivo neste contexto, o filme Django Libertado, do realizador norte-americano Quentin Tarantino. Sem nada dizer do próprio título, cuja alusão transparente a uma das obras fundadoras da cultura europeia, do humanismo ocidental, Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo, integra desde logo os humilhados e ofendidos (que distância frente a trouvailles lexicais que, na sua simples formulação, apelam a um tribalismo sectário e exclusivista como “razão negra” ou “epistemologias do Sul”), neste caso os escravos negros, refira-se o episódio wagneriano. Schultz narra a Django a lenda alemã, que mesmo para um alemão não passa de uma lenda, ou seja, já não é vinculativa para o presente se não for interpretada, de Brunilde, filha de Wotan, libertada por Siegfried — Tarantino remete tácita e ironicamente para Wagner, que figura na cultura popular, e não só nela, como o germanismo racista por antonomásia. Quando escuta “as obras do amor” de Siegfried, a exclamação de Django redime o passado no presente, ao libertar a significação humana da história, que não fica agrilhoada ao que aconteceu (é também a cultura alemã que é libertada, como o será também mais à frente no episódio da harpa, em referência directa aos nazis que nos campos de extermínio ouviam Beethoven), e liberta o presente à luz dessa história, uma vez que o escravo se reconhece e se liberta nessa mesma significação nele universalizada: I know how he feel (sic). Trata-se da apropriação consubstancial à cultura — uma apropriação sem garantias, fragmentária e falível —, que não seria possível numa cultura com regiões demarcadas, onde todas as obras propostas são como a pescada, que antes de o ser já o era, e que desse modo transformaria a cultura (a história) na eterna repetição do mesmo, como a cultura nos regimes ditatoriais prova à saciedade.

Enquanto modo de pensar, a imunização gnóstica perante a história não deixa de lhe estar sempre subordinada; comprova-o a sucessão de causas que provocam escândalo. O presente histórico que os pneumáticos gostariam de ver desaparecer impõe-se inevitavelmente, é inerente à história como tal. Um tão desesperado ressentimento contra a história tem por consequência uma luta inconfessável pela conservação do poder, isto é, da instância formal que a todo o momento pode condenar ou absolver os diversos conteúdos (valores, crenças, etc.) históricos. Somente no constante exercício do poder se pode aplacar a tensão gerada por uma posição intelectualmente falsa; ataviado de exigências morais, o poder assim compreendido será uma produção e um consumo permanente de inimigos. Aplica-se aqui o princípio quod principi placuit habet vigorem legis — o que agrada ao príncipe tem força de lei. A moral sem história, correlato de um saber absoluto, redunda assim num capricho da vontade humana, demasiado humana, de pequenos deuses candidatos a príncipes deste mundo.