Acordai. O racismo e o fascismo estão na Assembleia da República
Esperemos que as instituições competentes não continuem a compactuar com a inconstitucionalidade de manifestações como a de sábado passado e tomem medidas à altura para impedir que a extrema-direita continue a propagar discursos de ódio racistas e fascistas desde a Assembleia da República até ao espaço público.
As associações e coletivos antirracistas que convocaram a concentração “Acordai! O racismo e o fascismo estão na Assembleia!”, que iria ter lugar na sexta-feira, dia 25 de junho, a partir das 16 horas, em frente ao Parlamento, decidiram cancelá-la, porque o local escolhido não oferecia as condições necessárias para o cumprimento das normas de segurança sanitária impostas e reforçadas esta semana para a Área Metropolitana de Lisboa, sobretudo em concelhos, como a Amadora e Sintra, em que é especialmente expressiva a presença de população negra.
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As associações e coletivos antirracistas que convocaram a concentração “Acordai! O racismo e o fascismo estão na Assembleia!”, que iria ter lugar na sexta-feira, dia 25 de junho, a partir das 16 horas, em frente ao Parlamento, decidiram cancelá-la, porque o local escolhido não oferecia as condições necessárias para o cumprimento das normas de segurança sanitária impostas e reforçadas esta semana para a Área Metropolitana de Lisboa, sobretudo em concelhos, como a Amadora e Sintra, em que é especialmente expressiva a presença de população negra.
Mas não cessaram os motivos que nos levaram à convocação da concentração e agora, após ter decorrido a manifestação “Portugal não é racista” organizada pelo Chega, ainda menos. O presidente da República, governo, partidos com assento parlamentar, tribunais e outras instituições responsáveis devem combater firmemente as posições racistas e fascistas do deputado do Chega. Partidos políticos que proclamem o ódio racial e disseminem o fascismo devem ser ilegalizados e os seus eleitos no parlamento devem perder os mandatos, conforme o disposto na lei fundamental. As instituições devem fazer cumprir a Constituição da República, nomeadamente os seus artigos 46.º e 160.º que, respetivamente, defendem que “não são consentidas (...) organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista” e que “perdem o mandato os Deputados (...) por participação em organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista”.
Se poderia haver alguma réstia de dúvida inicial, desde a sua entrada na Assembleia da República, têm vindo a somar-se evidências sobre as orientações, declarações, propostas e filiações racistas e fascistas do partido Chega. Utiliza a Assembleia da República para fazer propostas inconstitucionais e de incitamento ao ódio (castração química, confinamento específico das comunidades ciganas, o fim do combate à discriminação racial, etc.), chegando mesmo a propor uma IV república, numa afronta expressa à Constituição e ao regime democrático. Se cada linha vermelha pisada pelo Chega não gera uma alteração profunda no peso eleitoral dos partidos com representação na AR, existem corpos e comunidades que sofrem imediatamente as consequências da normalização do discurso discriminatório, nas suas vidas quotidianas, nas redes sociais, nos seus empregos, nos transportes públicos, no acesso aos seus direitos.
O seu discurso no espaço público e no Parlamento é marcado por uma sistemática discriminação com base na origem étnico-racial da comunidade cigana (desde a sua campanha nas autárquicas em Loures 2017 até, já como deputado na AR, no quadro da pandemia covid-19, em que sugere o confinamento específico desta comunidade, ou em pleno discurso nas celebrações do 25 de Abril na Assembleia da República em que faz injunções sobre “minorias”), assim como pelo desprezo e/ou criminalização de outros cidadãos racializados (como quando defendeu que uma deputada negra deveria ir “para a sua terra” ou quando apoia o reforço da intervenção policial musculada nos bairros periféricos e racializados). Na manifestação de sábado, disse expressamente que “rejeita minorias que querem continuar a não fazer nada” e que “não podemos ter minorias que só querem direitos e não querem deveres”. Isto é não só discriminação racial como incitamento ao ódio para com as comunidades racializadas. Para legitimar estas declarações o deputado alavanca-se no negacionismo lusotropicalista que, transversalmente, o nosso sistema político tem mobilizado, fazendo reféns os atores políticos. Diz ele, como muitos outros de diferentes lugares do espectro político, que “temos 500 anos de história de interculturalidade”. O lema da própria manifestação foi a reprodução da negação do racismo, legitimado dias antes pelos líderes do PSD e do PCP, Rui Rio e Jerónimo de Sousa, quando disseram não haver racismo em Portugal. Infelizmente, nada disso tem adesão à realidade quando o último inquérito do European Social Survey indica que apenas 11% dos portugueses não manifestam qualquer crença racista.
Com esta manifestação, André Ventura ensaiou e conseguiu traduzir no espaço público a narrativa da negação e da banalização do racismo. Mas só conseguirá proveitos políticos desta circunstância se o sistema partidário continuar, para além de se “acobardar”, a seguir a estratégia política da cautela tática da não confrontação por medo de polarização do debate sobre racismo na sociedade portuguesa.
A manifestação por si organizada, com o mote “Portugal não é racista”, teve entre os seus fervorosos mobilizadores Mário Machado, apelando à adesão nas redes sociais e alertando para que os manifestantes do Chega evitassem fazer a saudação nazi ou usar simbologia desse teor durante o percurso. O próprio André Ventura fez, no dia da manifestação, de forma dissimulada mas visível, essa saudação, “piscando o olho” aos seus aliados neonazis que estrategicamente optaram por ter uma presença discreta na manifestação.
Outros sinais desta deriva racista e neonazi tornam-se escandalosamente notórios quando, por exemplo, agressores envolvidos no assassinato de Alcindo Monteiro, em 1995, têm tempo de antena em programas televisivos de grande audiência (Mário Machado no programa “Você na TV” da TVI, em 2019; Nuno Cláudio Cerejeira no programa A Nossa Tarde, da RTP, em 2019). Mas sobretudo quando várias agências internacionais e nacionais – relatórios EUROPOL, Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) e ECRI – alertam que estes grupos têm vindo a crescer e a reorganizar-se e que há infiltrações nas forças policiais. Em 2019, o grupo Nova Ordem Social (NOS) organiza a primeira manifestação de celebração de Salazar, desde o 25 de Abril, com o nome “Salazar faz muita falta”. No mesmo ano, pela mão da mesma organização, decorre em Lisboa uma conferência de extrema-direita europeia. Neste ano de 2020, o Ministério Público acusa 27 Hammerskins por agressões violentas e tentativas de homicídio de 18 pessoas – membros de minorias étnico-raciais, homossexuais e comunistas.
A fraude e o logro são marcas do Chega e de André Ventura, desde a formação do seu partido (em que 25% das assinaturas eram ilicitamente de menores, forças policiais e pessoas já falecidas), à ocultação do historial neonazi de dirigentes, passando pela acumulação de funções e fontes de rendimento quando havia apregoado o regime de exclusividade para deputados.
Estes são sinais do avanço da extrema-direita em Portugal e no mundo. E esta manifestação é mais uma linha vermelha pisada pelo Chega nas barbas da democracia. Esta circunstância coloca André Ventura na posição de liderar a disputa política sobre o racismo, encostando tanto as direitas (neofascistas e democráticas) e as esquerdas sobre o vazio político da falta de respostas concretas no combate ao racismo. Assim, vai capitalizando politicamente com o racismo estrutural que existe na sociedade portuguesa.
À moda de populistas como Bolsonaro, Viktor Orbán, Salvini ou Trump, André Ventura, consciente da sobrevivência de um imaginário salazarista na sociedade portuguesa, não tem pejo em assumir-se com o Messias da direita. Assim, para disputar espaço de legitimidade social num sistema político laico, ele proclama que “Deus está no comando”, numa estratégia de subversão da tradição política republicana de separação das ordens religiosa e pública, mas também para acomodar a sua relação com sectores religiosos conservadores e reacionários.
A manifestação do Chega merece reflexão e preocupação, independentemente da sua dimensão em termos de adesão popular. Apesar da sua promessa de trazer à rua uma maioria silenciosa, o certo é que matematicamente, só cerca de 2 % do seu eleitorado respondeu ao apelo de manifestação. Porém, o que a iniciativa prova é que sem enfrentamento frontal à sua agenda racista e fascista, André Ventura pode aproveitar-se para criar mais espaço para a legitimação política do fascismo e do racismo.
Esperemos que as instituições competentes não continuem a compactuar com a inconstitucionalidade de manifestações como a de sábado passado e tomem medidas à altura para impedir que a extrema-direita continue a propagar discursos de ódio racistas e fascistas desde a Assembleia da República até ao espaço público, legitimando a violência do Estado e pondo em causa a segurança e a liberdade dos cidadãos, agravadas pela conjuntura pandémica atual.
As manifestações antirracistas de 11 de janeiro, de 1 de fevereiro e, mais recentemente, de 6 de junho têm vindo a colocar em evidência uma crescente adesão e mobilização popular em torno da luta contra o racismo. Não serão as vozes da extrema-direita, agora com assento parlamentar, que nos irão silenciar. Portanto, reafirmamos que o combate contra o fascismo e o racismo não cessará.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico
Signatários
Associação Cavaleiros de S. Brás
Consciência Negra
INMUNE - Instituto da Mulher Negra em Portugal
NARP - Núcleo Anti-Racista do Porto
NAC - Núcleo Anti-Racista de Coimbra