A verdade oculta por trás do poder do jejum intermitente

Em humanos a perda de peso é um processo muito mais comportamental do que fisiológico e que depende fundamentalmente da adesão a qualquer tipo de plano alimentar mais do que a composição nutricional do mesmo.

Foto
Viktoriia Ponomarenko/Getty Images

Os mais cépticos seguidores desta rubrica que me desculpem pelo ardiloso exercício do título do artigo, mas dificilmente algo atrai tanto os promotores de teorias conspirativas como a fórmula “a verdade oculta por trás de… (inserir tema)”. E este artigo é para eles.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Os mais cépticos seguidores desta rubrica que me desculpem pelo ardiloso exercício do título do artigo, mas dificilmente algo atrai tanto os promotores de teorias conspirativas como a fórmula “a verdade oculta por trás de… (inserir tema)”. E este artigo é para eles.

Há mais um livro no mercado falando sobre as maravilhas do jejum que entre outras coisas refere que o jejum é melhor para a perda de peso porque o corpo “deixa de ser uma máquina de consumir açúcar e passa a consumir gordura”, que “reverte a diabetes tipo 2 e doenças auto-imunes”, que “12 horas de jejum são insuficientes e que 24h são fáceis de fazer” e que recomenda esse hábito tão português como jantar “um caldo de ossos pois não interrompe o jejum”. É interessante ver que nem é preciso ser profissional de saúde (basta ser um jornalista ou um comediante sensato), para ficarem na dúvida se estes benefícios “não serão coisa a mais” quando entrevistam a autora (que não é nutricionista como muitas vezes se diz).

Os fanáticos do jejum sabem que o seu público alvo adora (ou não tem infelizmente capacidade de identificar) várias falácias. Começando com a falácia da autoridade, faz parte da “cartilha” do jejum referir o Prémio Nobel da Medicina a Yoshinori Ohsumi, em 2016, com o seu trabalho nos mecanismos de autofagia em células de levedura (que pouco tem a ver com o jejum em humanos) mas sobre isso já falamos noutro artigo. Outra falácia clássica é a da antiguidade, uma vez que o jejum “é uma prática milenar que ainda hoje as grandes religiões — do judaísmo ao islamismo, passando pelo catolicismo — praticam”. Ora, se seguíssemos o exemplo de práticas médicas milenares podíamos voltar a usar enguias eléctricas para tratar gota, tratar cáries com cera quente, fazer sangrias com sanguessugas e por aí adiante.

Referir que com o jejum se passa a “consumir mais gordura e emagrece-se mais rápido” é uma bonita fábula mas que é desmentida pelos princípios fisiológicos básicos, dado que o que determina a oxidação de substratos energéticos é a intensidade da atividade física desenvolvida. Partindo do pressuposto de que todas as pessoas que estão a ler este artigo estão sentadas, todas estão a “queimar” mais gordura do que hidratos de carbono. Começamos a “queimar” mais hidratos de carbono, quando aumentamos a intensidade da nossa atividade como caminhar mais rápido, correr ou até “sprintar”. Apesar de uma ingestão crónica de hidratos de carbono de elevado índice glicémico e consequente aumento de insulina ter um efeito supressor na oxidação de gordura, o que determina a perda ou aumento de massa gorda é o balanço total de calorias ao longo do dia (total ingestão vs total gasto) e não o nutriente oxidado momentaneamente (até porque é bom sinal que o corpo esteja a “consumir” mais açúcar, pois significa que estamos a treinar a alta intensidade). A melhor forma de “queimar” mais gordura é mesmo ser fisicamente activo, dado que uma das muitas adaptações positivas do treino é melhorar a nossa capacidade de oxidar gordura.

A diabetes tipo 2 é de facto reversível quando se perde peso seja “apenas” através de dieta, de cirurgia bariátrica e quando se ajustam os hidratos de carbono da dieta (seja a quantidade total seja a sua carga glicémica, independentemente da prática de jejum. Uma revisão de 11 estudos sobre jejum (de 12 a 20 horas) com duração de 4 a 8 semanas, demonstrou que o efeito do jejum intermitente é marginal na redução dos níveis de glicemia em jejum quando em comparação com a restrição calórica contínua. O que é o mesmo que dizer que o jejum de facto resulta, mas resulta de forma igual a uma dieta com o mesmo número de calorias, mas ingeridas com refeições de 3 em 3 horas por exemplo.

Quanto à perda de peso, mais uma vez se reforça que em humanos a perda de peso é um processo muito mais comportamental do que fisiológico e que depende fundamentalmente da adesão a qualquer tipo de plano alimentar mais do que a composição nutricional do mesmo. Quando falamos destas abordagens mais alternativas para o emagrecimento, é típico o pensamento: “Conheço alguém que começou a fazer jejum intermitente e já perdeu imenso peso”; ou então “comigo tem resultado muito bem”. Alguém que tem a motivação para alterar a sua alimentação de forma tão significativa como deixar de comer durante grande parte do dia, terá sempre resultados, não pela abordagem em si, mas porque está motivado para cumprir à risca as orientações que lhe foram dadas. Nenhum processo de perda de peso pode ser dissociado do contexto motivacional e comportamental que o envolve, uma vez que somos humanos e não ratinhos ou células em placas de Petri. Se há um típico padrão alimentar associado à obesidade em Portugal é a inexistência de pequeno almoço e de pequenas refeições, e duas “montanhas” de comida ao almoço e jantar, que no fundo correspondem a 2-3 horas diárias a comer e o resto do tempo em jejum, o que mais uma vez reforça que é o total de calorias que faz toda a diferença no final do dia.

Concluindo, existe uma diferença entre ouvir um profissional de saúde dizer “se quiser fazer jejum está à vontade para o fazer, é uma escolha sua” ou “o jejum intermitente reverte a diabetes tipo 2, aumenta a longevidade e deve fazê-lo todos os dias”. Esta última postura pode ser vista desde logo como um “alerta de aldrabice” onde irá certamente encontrar outros “clássicos” como exclusão desnecessária de glúten e lacticínios, dezenas de suplementos nutricionais que não precisa de tomar, análises clínicas ou testes de intolerância alimentar que não têm validade científica e certamente consultas ao dobro ou triplo do preço normal, uma vez que uma aldrabice para “colar” convém que seja cara, pois se for barata ninguém acredita. Se o seu ego se assusta quando ouve a palavra “convencional” pois acha-se especial e quer sempre algo “diferenciado e personalizado”, então está no bom caminho. Irá certamente pagar o célebre imposto da ignorância por este tipo de abordagem, mas se esse for o mote para cumprir e aderir a um plano alimentar saudável, nada a opor. Como se diz na gíria “não existem golos feios”, e se o objectivo a que se propôs for atingido terá sido sempre uma boa opção. Se é apenas alguém interessado pela área e no meio de tanta (contra)informação já não sabe para que lado se virar, pode ter a certeza que o jejum sendo seguro e válido do ponto de vista científico, está longe de ser a cura para todos os seus problemas, sobretudo se for mais uma mudança de estilo de vida com vista ao emagrecimento que não consegue manter para a vida toda.